sábado, 14 de março de 2009

O desinteresse kantiano aplicado ao futebol

É usual relacionar-se o futebol com emoções e não é novidade ouvir falar do desporto-rei como um jogo de paixões. Para grande parte das pessoas, assistir a um jogo de futebol é mais do que assistir a um jogo de futebol: é partilhar sentimentos, é libertar ânimos, é fazer parte de um espírito colectivo, é emocionar-se, etc. O futebol, como aliás outras actividades próprias do Homem, serve desta forma ao Homem como fonte de prazer.

Há essencialmente - do meu ponto de vista - duas formas de um desafio de futebol constituir fonte de prazer. Para aqueles que vêem um jogo do seu clube e que são afectados pelo sucesso ou pelo insucesso do seu clube, as peculiaridades de uma partida transformam-se em prazer, pela positiva ou pela negativa, com base num critério puramente arbitrário e que releva de um gosto ou de uma apetência unicamente individual que normalmente não se explica. Tentando transpor este tipo de leitura para o campo das artes, teríamos coisas absolutamente ridículas. Não faz qualquer sentido dizer que se prefere a arte de José Malhoa à de Caravaggio ou a música de Marco Paulo à de Mozart apenas porque somos portugueses. Em arte, não faz qualquer sentido haver avaliações com base em critérios de identificação pessoal. Ora, por que razão haveria então de o futebol ser diferente? Poder-se-á dizer que o futebol tem uma dimensão competitiva que justifica esse tipo de critério. Compreendo e aceito. Mas jamais a avaliação qualitativa de um jogo de futebol pode estar afectada por isso. Onde quero eu chegar? Ao cerne da questão. Ao valor de uma partida de futebol. Haver quem sofra com as vitórias do seu clube ou quem exulte com os êxitos da sua selecção é apenas uma consequência do facto de o futebol ser um fenómeno sócio-cultural. Enquanto fenómeno sócio-cultural, é aceitável que haja quem o veja desse modo. Mas o futebol é mais que isso. O futebol é arte.

Boa parte de quem vê futebol não vê no jogo mais do que um fenómeno desse tipo e um golo da sua equipa é igual a uma vitória política do partido que apoia ou produz uma satisfação parecida com aquela que produz a ingestão de um pedaço da sua fruta preferida. Ora, gostar de futebol não é o mesmo que gostar de maracujá. Há, contudo, um segundo tipo de pessoas que, embora nutra afeição por um determinado clube e vá ao estádio pela euforia da vitória e pela simpatia para com o clube, sabe que o jogo em si é muito mais do que um fenómeno sócio-cultural. Estas pessoas têm a percepção de que a avaliação da qualidade de uma partida não pode ser medida pelo grau de satisfação que o clube do seu coração lhes proporciona e têm até, por vezes, a consciência de que essa relação com esse clube influencia a sua capacidade de tecer considerações objectivas sobre um determinado jogo. Este é o segundo tipo de pessoas para quem o futebol constitui uma fonte de prazer. A diferença essencial tem a ver com o tipo de prazer. Ao contrário do primeiro tipo, para quem o prazer é directamente proporcional à taxa de sucesso do clube apoiado, para este tipo de pessoas o prazer de um jogo residirá noutra coisa. Que coisa será essa? É o que vamos tentar perceber de seguida.

Estas pessoas, ainda que saibam distinguir as emoções proporcionadas pelas vitórias ou derrotas do seu clube do coração das emoções proporcionadas pela qualidade do próprio jogo, continuam a incorrer num erro que consiste em presumir que a qualidade tem a ver com a emoção que propicia. Para estas pessoas, portanto, um bom jogo de futebol é aquele que confere maior satisfação, sendo essa satisfação medida pela carga emocional que o mesmo conseguir transmitir. Desta forma, avaliam a qualidade de um jogo pelo número de golos ou pela intensidade do próprio jogo, pelo ritmo a que os eventos se dão ou pela incerteza no marcador, pela quantidade de oportunidades de golos ou pela quantidade de suor deixada em campo. Todas estas coisas são incidências do jogo que podem ou não significar que o jogo foi bom. Haver muitas oportunidades de golo pode tanto significar que se assistiu a um bom jogo como pode significar que se assistiu a um número elevado de disparates das defesas. Nada destas coisas implica necessariamente que o jogo tenha sido bom. E isto por uma razão simples. Porque a qualidade do jogo não tem nada a ver com o grau de prazer que proporciona.

Há, neste momento, um comparação interessante a fazer. Quando uma pessoa vai a um concerto, ou quando ouve música em casa ou no carro, essa pessoa não está, verdadeiramente, a ouvir música. Isto é, a razão pela qual se vai a um concerto não é a música, do mesmo modo que a razão pela qual se vai ao futebol não é o futebol. Aquilo que uma pessoa vai fazer a um concerto é estabelecer um comunhão entre ela e o músico, entre aquilo que o músico transmite e aquilo que se está a passar dentro dela. Se entendermos a música como arte, um concerto é uma aberração. Aquilo que se passa num concerto é que as pessoas querem assimilar a música e aquele que a interpreta, sendo que a fruição de um concerto consiste nessa capacidade de partilha de sensações. A música em si, num concerto, tem um papel secundário; o que importa é a conformidade entre espectador e artista. Ora, isto não tem nada a ver com arte. Qualquer participação emotiva da parte do espectador é sintoma de que não se está a assistir a arte, mas sim ao interesse que o objecto que se tem pela frente nos provoca. Num jogo de futebol não é diferente. Todo aquele que estiver a assistir a um jogo centrado no interesse que esse jogo lhe provoca, seja esse interesse motivado pelo facto de o seu clube do coração estar em campo ou pela emoção que o jogo em si propicia, não está a assistir a futebol. E, de maneira geral, todo aquele que estiver interessado em fruir com a experiência de ver um jogo não tem, de facto, capacidade para compreender objectivamente o mesmo. Isto só é possível entendendo o jogo como uma obra de arte, como uma experiência estética. A qualidade de algo só pode ser avaliada tendo em conta apenas as propriedades próprias desse algo. Não faz sentido, portanto, avaliar a qualidade dessa coisa através daquilo que provoca em quem a vê, pois essa avaliação estará sempre dependente da pessoa em causa, ou seja, será sempre subjectiva. Neste sentido, a qualidade de um jogo só pode ter a ver com as suas propriedades estéticas.

É aqui que entra Kant e a sua noção de desinteresse. Na Crítica da Faculdade do Juízo, o filósofo alemão diz o seguinte:

"Para distinguir se algo é belo ou não, referimos a representação, não pelo entendimento ao objecto com vista ao conhecimento, mas pela faculdade da imaginação (talvez ligada ao entendimento) ao sujeito e ao seu sentimento de prazer ou desprazer. O juízo de gosto não é, pois, nenhum juízo de conhecimento, por conseguinte não é lógico e sim estético, pelo qual se entende aquilo cujo fundamento de determinação não pode ser senão subjectivo. Toda a referência das representações, mesmo a das sensações, pode porém ser objectiva (e ela significa então o real de uma representação empírica); somente não pode sê-lo a referência ao sentimento de prazer e desprazer, pelo qual não é designado absolutamente nada no objecto, mas no qual o sujeito se sente a si próprio do modo como ele é afectado pela sensação.
Apreender pela sua faculdade de conhecimento (seja num modo de representação claro ou confuso) um edifício regular e conforme a fins, é algo totalmente diverso do que ser consciente desta representação com a sensação de comprazimento . Aqui a representação é referida inteiramente ao sujeito e na verdade ao seu sentimento de vida, sob o nome de sentimento de prazer ou desprazer; o qual funda uma faculdade de distinção e julgamento inteiramente peculiar, que em nada contribui para o conhecimento, mas somente mantém a representação dada no sujeito em relação com a inteira faculdade de representações, da qual o ânimo se torna consciente no sentimento do seu estado."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §1)

Por outras palavras, o que diz Kant aqui é que o juízo de gosto deve estar orientado unicamente para o objecto e não para o modo como esse objecto afecta o sujeito, sendo que formar representações com base na sensação de comprazimento institui julgamentos peculiares, relacionados unicamente com a pessoa que os forma e incapazes, portanto, de conferir qualquer espécie de conhecimento. Continua Kant:

"Chama-se interesse ao comprazimento que ligamos à representação da existência de um objecto. Por isso um tal interesse sempre envolve ao mesmo tempo referência à faculdade da apetição, quer como seu fundamento de determinação, quer como vinculando-se necessariamente ao seu fundamento de determinação. Agora, se a questão é saber se algo é belo, então não se quer saber se a nós ou a qualquer um importa ou sequer possa importar algo da existência da coisa, mas sim como a ajuízamos na simples contemplação (intuição ou reflexão). [...] Cada um tem que reconhecer que aquele juízo sobre a beleza, ao qual se mescla o mínimo interesse é muito faccioso e não é nenhum juízo de gosto puro. Não se tem que simpatizar minimamente com a existência da coisa, mas pelo contrário ser a esse respeito completamente indiferente, para em matéria de gosto desempenhar o papel de juiz."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §2)

Avaliar uma obra tem de ser um acto puramente desinteressado aquando do qual não está em actividade qualquer espécie de afinidade entre o sujeito que avalia e a obra em causa. "Ser completamente indiferente" a um jogo de futebol é ser capaz de se distanciar o suficiente do jogo para que o mesmo não produza qualquer espécie de efeito em si. Só com esta distanciação e com este desinteresse se está apto a avaliar esteticamente uma partida de futebol.

"Onde pois não é porventura pensado simplesmente o conhecimento de um objecto mas o próprio objecto (a forma ou existência do mesmo) como efeito, enquanto possível somente mediante um conceito do último, aí se pensa um fim. A representação do efeito é aqui o fundamento determinante da sua causa e precede-a. A consciência da causalidade de uma representação com vista ao estado do sujeito para o conservar nele pode aqui de modo geral designar aquilo que se chama prazer."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §10)

Todo o juízo estético deve ter por fim o conhecimento do objecto e não o efeito que o próprio objecto produz. Avaliar, portanto, uma partida de futebol com base no prazer que esta possa produzir no sujeito é, pois, estar concentrado no objecto em si e não no seu conhecimento, que é o que importa.

"Todo o fim, se é considerado como fundamento do comprazimento, traz sempre consigo um interesse como fundamento de determinação do juízo sobre o objecto do prazer. Logo, nenhum fim subjectivo pode situar-se no fundamento do juízo de gosto. [...] nem um agrado que acompanha a representação, nem a representação da perfeição do objecto e o conceito de bom podem conter esse fundamento de determinação."

(Immanuel Kant, Crítica da Faculdade do Juízo, §11)

O juízo de gosto não deve, pois, ser influenciado por aquilo que o objecto em causa proporciona, nem fundamentado por conceitos a priori daquilo que é bom. Uma partida de futebol deve ser analisada sem o espectro do prazer que causa e sem qualquer conceito formado previamente que defina em que parâmetros a mesma possa ser assinalada positiva ou negativamente. Só deste modo é possível ver futebol com um desinteresse perfeito e ser capaz de se inferir objectivamente acerca disso. O que sobra, pois, são as propriedades intrínsecas do objecto, propriedades que não tenham qualquer relação connosco mas apenas umas com as outras. No caso de uma partida de futebol, essas propriedades não serão, portanto, a emotividade, a intensidade, a quantidade de golos, etc. Isso são propriedades manifestadas pelos efeitos que uma partida produz. Aquilo que é verdadeiramente relevante é a qualidade intrínseca do jogo, a qualidade que dependa unicamente da funcionalidade do jogo. Essa qualidade, para quem assiste desinteressadamente ao jogo, só pode estar contida na própria essência do jogo. E a essência do jogo define-se por critérios de utilidade. Por outras palavras, a intensidade só será positiva enquanto útil; chutar à baliza só será positivo enquanto constituir a coisa mais útil a fazer naquele momento, etc. A qualidade de um jogo e, por conseguinte, a qualidade do futebol praticado por cada uma das equipas depende das acções colectivas, das decisões individuais, da reacção entre cada um dos elementos das equipas, da fricção entre dois blocos adversários, enfim, da utilidade de cada pormenor enquanto finalidade particular naquele instante.

Sintetizando, a qualidade de um jogo de futebol não tem a ver com a emoção, não tem a ver com golos, não tem a ver com vitórias, não tem a ver com malabarismos, não tem a ver com nada que não se cinja à utilidade de cada detalhe. A qualidade só pode ser interpretada de acordo com a utilidade daquilo que se faz a cada momento. E aquilo que é útil a cada momento varia, de acordo com a situação, não havendo por isso um critério universal estipulado a priori para defini-lo. O que é bom é-o mediante as circunstâncias da altura e o nível de qualidade de um jogo está ligado à quantidade de situações resolvidas adequadamente.

5 comentários:

apenasfutebol disse...

Interessante o raciocínio. De facto, custa-me muito analisar os jogos do meu clube. Prefiro (ou nem sequer tenho alternativa)entregar-me à perspectiva emocional.

Por vezes há quem confunda um jogo "bem jogado" com um jogo emotivo. Assim de repente lembro-me do Sporting-Benfica para a taça a época passada - paradigma do jogo de emoções que muita gente se apressou a chamar de "grande jogo de futebol"!!

Na minha opinião há espaço para tudo, e nem pode ser de outra maneira. O futebol é um fenómeno sócio-cultural (fenómeno social total, como lhe chamou Marcel Mauss) e é também arte, e até ciência. Todas estas dimensões têm igual valor. Pelo menos para quem consegue ver as coisas desta maneira. O problema, na minha opinião, é que há aqueles que olham para o fenómeno com as lentes de apenas uma das muitas dimensões!


Abraço

Nuno disse...

Sim, concordo. O futebol tem todas estas dimensões e e possível apreciá-lo em todas estas dimensões. Mas para aferir a qualidade de um jogo só vendo-o através da dimensão artística.

Abraço!

JFC disse...

é sem duvida nenhuma um interessante raciocinio apesar da filosofia kantiana, nomeadamente quanto à moral, estar desactualizada nos dias de hoje. O facto de partires do mundo de Kant, racional e desprovido de qualquer juizo empirico, é extremamente louvável mas completamente exagerado. Olhar para um jogo de futebol sem qualquer emoção,gosto ou prazer é comparar o futebol a curling ou a sumo. O futebol equanto arte pode ser racionalmente apreciado, mas esta perspectiva pode ter uma componente lúdica.

"A qualidade só pode ser interpretada de acordo com a utilidade daquilo que se faz a cada momento. E aquilo que é útil a cada momento varia, de acordo com a situação, não havendo por isso um critério universal estipulado a priori para defini-lo. O que é bom é-o mediante as circunstâncias da altura e o nível de qualidade de um jogo está ligado à quantidade de situações resolvidas adequadamente."

este é melhor trecho do texto. Parabens.

ChuckE disse...

o futebol ë um jogo de trolhas, e tu ës um luis freitas lobo no desemprego.

Nuno disse...

Fixe. E ideias, tens?