domingo, 26 de setembro de 2010

Lições de Mestre (6)

Comecemos por uma ideia defendida habitualmente por muita gente e que está absolutamente errada. Para muitos, o Barcelona de Guardiola é uma equipa que abre muitíssimo, em momento ofensivo, fazendo campo grande e circulando a bola a toda a largura do terreno. Dizem certos entendidos que é esta faculdade que possibilita ao Barcelona o seu jogo rendilhado e que é no jogo exterior da equipa que está a sua principal virtude. Luís Freitas Lobo, a semana passada, a propósito do massacre a que o Braga foi sujeito em Londres, sugeriu que as pessoas estão equivocadas quando dizem que o Arsenal joga de maneira idêntica ao Barcelona. O seu argumento era o de que, ao contrário do Barcelona, que abre o seu jogo, o Arsenal privilegia a zona central para atacar.

Também considero que há diferenças entre o modo de jogar das duas equipas, mas esta não é certamente uma delas. É que, se há coisa em que as duas se aproximam, é no privilégio quase contra-intuitivo dos espaços centrais para atacar. O Barcelona não faz campo grande como julgam. Se há coisa que distingue o 433 dos catalães é a não fixação dos extremos nas linhas. Quem quer que jogue como extremo, tem por missão jogar por dentro, aproximar-se do portador da bola. A profundidade, em organização ofensiva, é sempre dada pelo lateral. Os extremos só ocupam a linha em momentos de transição ou como ponto de origem, de onde saem para vir receber um passe curto numa zona central. O futebol do Barcelona, assim como o do Arsenal, é preferencialmente jogado pelo meio; Luís Freitas Lobo está completamente enganado quando pensa que não.

O lance que se segue fortalece esta ideia. Mas podia ainda alegar, por exemplo, a opção clara de Guardiola pelo 442 losango nos dois últimos jogos, frente ao Gijón e frente ao Bilbao, com Busquets a trinco, Keita e Xavi como interiores, e Iniesta como médio ofensivo, a cair preferencialmente em zonas centrais, ficando o ataque entregue a Villa e Pedro/Bojan. Neste esquema, então, foi ainda mais visível a ocupação dos espaços centrais e o privilégio dado ao jogo pelo meio. Fazer campo grande não é algo que esteja nos princípios do Barça, simplesmente porque tal é contraditório à filosofia de jogo da equipa, que requer uma rede de apoios muito mais próxima e compacta. Para que o Barcelona possa jogar como joga, tem de ter, mesmo com bola, os jogadores muito juntos uns aos outros. A largura e a profundidade é, por isso, tarefa de quem vem de trás, nunca dos extremos.




O golo começa a ser construído com a vinda da bola da linha para o meio e é a partir do meio que tudo se desenha. Neste momento, estão 9 jogadores do Panathinaikos atrás da linha da bola. Um passe vertical de Messi trata de deixar batidos os dois médios entre os quais a bola passa. Entre linhas, Xavi devolve de primeira a Messi, que entretanto se desmarcara para a frente. Ao receber a bola de Xavi, Messi torna-se no alvo das atenções dos defesas gregos. O defesa que estava em cima de Pedro sai da marcação para travar Messi, que passa a poder jogar com Pedro. Fá-lo e recebe de imediato a devolução, já no interior da área. Depois, é dominar a bola e rematar. O mais difícil estava feito.

Com duas tabelas perfeitas, as duas iniciadas por um passe vertical que queima linhas, o Barça ultrapassou uma defesa que, inicialmente, estava composta por nove jogadores. É assim que se entra numa defesa compacta, que opta por colocar quase todos os seus jogadores atrás da linha da bola. Esta jogada exemplifica várias coisas. Reforça, em primeiro lugar, a ideia que referi há algumas semanas acerca de fazer da bola um engodo. Desmente, igualmente, a teoria de que o Barcelona não ataca pelo meio. E demonstra, por fim, a utilidade que há num simples passe vertical. Nos dias que correm, o jogador que tenha por preocupação este tipo de passes é sempre um jogador com uma capacidade acima da média. Era esta qualidade que, por exemplo, Pontus Farnerud possuía e que poucos valorizavam. É esta qualidade, também, que faz de Hélder Postiga um avançado muito mais valioso do que se quer crer. Mas como se prefere a garra, a capacidade de luta e a obsessão pelo golo, jogadores como estes dificilmente agradam às massas. É pena que não haja mais Guardiolas para educá-las.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

Mascherano e a Competência de uma Equipa

Mascherano foi o último reforço do Barcelona para esta temporada. Para muitos, é um dos melhores médios defensivos da actualidade e traz ao Barcelona uma agressividade e uma capacidade de recuperação invulgares, sendo por isso natural o interesse que o clube catalão depositou no jogador. Não partilho desta ideia. E vou mais longe. Nem sequer compreendo esta aquisição. Faria sentido em qualquer outro clube do mundo. No Barcelona de Guardiola, simplesmente não faz.

Mascherano é um jogador de grande utilidade defensiva, um atleta incansável, com uma capacidade de luta pouco vulgar. É, além de tudo isto, um jogador de passe fácil, raramente se aventurando em coisas que não são para ele. Com as suas características, há pouquíssimos jogadores no mundo inteiro com a sua qualidade. O problema é que o Barcelona não faz uso dessas características nem necessita propriamente de um jogador para fazer algo que, habitualmente, faz em equipa. Aquilo em que Mascherano é forte e aquilo que pode oferecer é capacidade de recuperação, agressividade e muita disponibilidade física. Com ele em campo, o Barça ganha maior capacidade de luta. Mas perde muitíssimo mais. Perde critério, qualidade posicional, entendimento do jogo e capacidade de decisão. E, enquanto as primeiras coisas são pouco importantes, uma vez que a equipa funciona como um todo a defender, não necessitando propriamente de um jogador estritamente vocacionado para os momentos defensivos do jogo, a capacidade de decisão do colectivo depende em muito da soma da capacidade de decisão dos seus atletas. E, nesse particular, a permanência de Mascherano em campo é incrivelmente nociva ao Barcelona.

O argentino estreou-se este Sábado, num jogo que o Barcelona acabou por perder, frente ao Hércules. Dificilmente, porque é difícil relacioná-lo aos lances dos golos, haverá quem justifique a derrota catalã com essa estreia. Pois é precisamente o que pretendo fazer. A relação não é directa, isto é, não é nos lances decisivos que quero justificar esta ideia. É antes no que, em termos gerais, significou ter em campo um jogador como o argentino. Mascherano não só não esteve ligado aos golos, como teve intervenções que, aos olhos de muitos, foram boas. Raramente falhou um passe, não comprometeu, esteve relativamente bem posicionado, etc. Estatiscamente, para aqueles que acham que as estatísticas reproduzem fielmente o rendimento de um jogador em campo, Mascherano fez um jogo extremamente positivo. De que modo então é possível, como eu quero fazer crer, que tenha feito um jogo deplorável e, mais do que isso, que tenha tido sérias responsabilidades na derrota dos catalães?

O Barcelona tem no seu plantel um jogador relativamente parecido com Mascherano, embora esteja mais habituado a jogar como médio-ofensivo, ao lado de Xavi, e não como pêndulo defensivo. Esse jogador é Keita. Acontece que, ao contrário de Mascherano, Keita não só leva dois anos de avanço de aprendizagem, não prejudicando tanto a equipa com a sua menor capacidade de decisão, como esgota a sua utilidade nos movimentos verticais e na capacidade que denota em juntar os sectores, fruto da sua excelente recuperação defensiva. Se Mascherano viesse para ser substituto de Keita, utilizado ao lado de um médio criativo e para equilibrar a equipa, menos mal, embora não me pareça tão necessário como isso ter sempre um jogador dessas características em campo, nesta equipa. Mas Mascherano vem para jogar como médio-defensivo, onde sempre jogou, para funcionar como cobertura dos médios mais ofensivos. E, tendo em conta a exigência específica da posição nesta equipa, nem para suplente de Busquets tem categoria, ficando muito aquém, por exemplo, de Yaya Touré, que é o jogador que vem, possivelmente, substituir no plantel.

Ora, foi precisamente como médio-defensivo, no lugar de Busquets, que Mascherano actuou. E, apesar de ter dado praticamente sempre seguimento às jogadas, apesar de não ter falhado praticamente nenhum passe, apesar de se ter conseguido desembaraçar das duas ou três situações complicadas em que se viu envolvido, fez um jogo miserável. A razão? Não percebeu ainda - e duvido que venha a percebê-lo - o que significa jogar nesta equipa e que tipo de competências deve desenvolver. Mascherano optou quase sempre pelo mais simples: jogar para o lado e para trás. Quando não o fez, quando procurou algo diferente, explorou o passe longo, para as alas. Nenhuma destas opções se coaduna com o jogar deste Barcelona. Mascherano não fez um único passe vertical. Repito: um único! E foram várias as vezes em que podia tê-lo feito. Por passe vertical entendo, como já o referi várias vezes, um passe rasteiro, não necessariamente comprido, a explorar um apoio frontal. Este tipo de passe é, nos dias que correm, algo a que pouquíssimas equipas dão importância, mas uma das mais interessantes opções que uma equipa que quer mandar no jogo pela posse de bola tem ao seu dispor. Mascherano preferiu sempre lateralizar ou, quando com espaço, esticar nas linhas. Não é assim que se joga à bola. Lateraliza-se ou joga-se para trás quando não há opções para a frente, quando o adversário fechou bem e a pressão vertical é eficaz. Estica-se nas linhas quando a pressão horizontal do adversário congestionou o jogo de um dos lados, quando há espaço e tempo para a bola chegar em condições a um colega e quando esse colega tem apoios próximos. Mascherano utiliza estas duas opções sem critério, apenas porque entende que ele (repare-se no individualismo da coisa) tem condições para decidir desse modo e executar em conformidade.

Mascherano não pensa o jogo colectivamente. Individualmente, é um dos médios defensivos mais fortes do mundo. Colectivamente, é banal. E o problema de jogar no Barcelona é que pode não chegar ser dos melhores em termos individuais, se não se souber pensar colectivamente. Por não sabê-lo, Mascherano comprometeu sempre o jogo catalão. Nunca procurou o apoio frontal, nunca arriscou um passe vertical, que ganharia metros à equipa, quando um colega tinha perto de si um adversário (coisa que qualquer jogador habituado ao futebol do Barça faz de olhos fechados, sabendo perfeitamente que o colega vai devolver a bola), nunca jogou curto sem ser para o lado, em total segurança. Fez um jogo medroso, não comprometendo com perdas de bola ou com passes falhados, mas comprometendo com más decisões, simplesmente por não decidir pelo melhor. A melhor decisão não é simplesmente a que permite à equipa permanecer com a posse de bola. Se a equipa pode progredir e ultrapassar uma linha defensiva, com um simples passe, jogar para o lado é uma má decisão, ainda que segura. Mascherano teve oportunidades de sobra para fazer evoluir o jogo da sua equipa, mas optou sempre por um passe de menor risco. O Barcelona manteve a posse de bola, mas raramente conseguiu ser incómodo com ela, raramente a conseguiu fazer entrar nas linhas adversárias.

Mascherano nunca respeitou os movimentos de abaixamento do avançado ou do médio mais ofensivo, nunca explorou os movimentos entre linhas dos colegas. Preferiu sempre o passe certo e a bola longa. Com isso, fez do Barcelona uma equipa muito mais previsível. É por isso que as estatísticas individuais objectivas, que contabilizam números de passes e percentagens de passes acertados e fazem disso um critério irrevogável para aferir o rendimento de um jogador, não servem para nada. É que incorrem num erro crasso. O rendimento de um jogador é uma coisa colectiva e não pode ser calculado pela soma objectiva das suas intervenções individuais. Para se aferir o rendimento de um jogador, é necessário perceber o impacto que cada uma dessas intervenções individuais teve no rendimento colectivo. E isso, por mais que o pretendam, não pode ser calculado somando acções contabilizáveis e fazendo contas de algibeira. Mascherano, para aqueles que acham que podem contabilizar o rendimento de um jogador somando-lhe as acções mais visíveis, teria feito um jogo exemplar. Para aqueles que desconfiam disso e sabem que o rendimento é muito mais do que aritmética primária, Mascherano fez um jogo fraco. Foi incapaz de ligar, com bola, a equipa e, muita por sua causa, o Barcelona foi uma equipa demasiado especulativa, demasiado horizontal, demasiado previsível a circular a bola.

É verdade que o argentino saiu ao intervalo e é verdade que o Barcelona não melhorou significativamente. Mas também é verdade que a equipa já se encontrava a perder e tinha necessariamente de fazer as coisas mais depressa, o que conduziu a alguma precipitação. No seu lugar, na segunda parte, jogou Keita, que oferece mais ou menos o mesmo que o argentino, nessa posição. Também por isso, o Barcelona não melhorou substancialmente. O erro de palmatória de Guardiola foi subestimar o Hércules, que além de se ter apresentado muito personalizado, tinha jogadores interessantes na frente. O Barcelona circulou demasiado a bola à roda do bloco defensivo do adversário, não procurando movimentos verticais de penetração. Competia isso, em grande parte, ao médio defensivo, porque era aí que começava a construção blaugrana. Quando esse médio é apenas um pêndulo defensivo, quando não procura ser ele a iniciar os movimentos de ruptura, a equipa fica com menos armas do que habitualmente tem. Que diferença para Busquets! Mascherano tem muito que evoluir, se algum dia interessar a Guardiola que seja útil ao seu Barcelona. No Sábado, apesar da ficha imaculada com que as estatísticas o terão certamente apresentado, Mascherano foi, não só uma nulidade, mas o melhor amigo de um adversário cuja estratégia passava por esperar pelo Barcelona no seu meio-campo, com as linhas muito juntas e quase todos os homens atrás da linha da bola. Quando, em simultâneo com o argentino, coincidiu no onze Adriano, outro dos reforços desta época, o Barcelona jogou com menos dois. E ainda há uns palermas que gostam de falar nas contratações da época passada!

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

O Engodo da Bola

Referi há dias algo em que acredito há já muito tempo, mas a que só muito recentemente consegui dar uma expressão satisfatória. Sou, como se sabe, defensor da ideia de que a bola é tudo, em futebol. E sempre o fui. Sempre me pareceu, ainda que não o soubesse articular convenientemente, que ter a bola era a mais fundamental das coisas no jogo. Os argumentos que arranjava para defender esta ideia eram os tradicionais: sem a bola a equipa está sempre mais próxima de sofrer; sem a bola a equipa está sempre dependente do que o adversário fizer, etc. Mas houve sempre algo mais, houve sempre uma ideia difícil de explicar por palavras que me fazia acreditar que a bola era, enquanto instrumento, o mais importante de possuir num jogo. O aparecimento do Barcelona de Guardiola veio dar visibilidade a todas (ou quase todas) as ideias acerca do jogo que se defendiam por aqui, veio pôr num campo de futebol a teoria que o Entre Dez formulou em palavras desde que fora criado. E o Barcelona de Guardiola fez e faz com a bola precisamente aquilo que, para mim, faz da bola algo tão precioso. Ainda assim, continuava a ser complicado expressar em argumentos a razão pela qual é tão importante possuir a bola.

Ora bem, a bola é importante se, acima de tudo, for utilizada como engodo. Claro que é importante saber circulá-la, saber preservá-la, mas isso não chega. Sobretudo no último terço do terreno e sobretudo contra adversários que optem por defender com muitos homens atrás da linha da bola e com um bloco baixo, há que saber utilizar a posse da bola para fabricar os espaços necessários para se poder penetrar nessas defesas. Ora, é fazendo da bola um engodo que tal passa a ser possível. Nos dias que correm e, de acordo com as sofisticadíssimas filosofias defensivas dos tempos modernos, há cada vez menos espaços para jogar e, por mais velozes, fortes e hábeis que os jogadores sejam, dificilmente uma defesa concentrada e bem posicionada zonalmente permitirá veleidades aos atacantes adversários. A única coisa que uma defesa bem organizada não pode deixar de perseguir, porque se movimenta e posiciona de acordo com a posição relativa dela, é a bola. Assim, é fazendo com que a bola atraia de certo modo os defensores para onde se pretende que melhor se pode forçar uma defesa a abrir espaços. A bola, quando circulada com critério e imaginação, torna-se por isso o mais eficaz abre-latas no futebol dos tempos que correm.

Quando o adversário activa o seu pressing (e tal, podendo acontecer em qualquer zona do terreno, de acordo com as instruções do treinador, acontece necessariamente junto à grande área defensiva), o portador da bola é sempre alvo de pressão. Se, nestas alturas, a equipa que tem a bola tiver a capacidade para circulá-la rapidamente entre os seus vários jogadores, mudando o portador da bola velozmente, cria necessariamente indecisões e movimentações descoordenadas no adversário que está a pressionar. Se a bola entra num determinado jogador, esse jogador será alvo de pressão por um defesa; se esse jogador soltar a bola e a endossar a um colega, passará a ser esse colega o alvo da pressão. Ora, se isto for feito com velocidade e critério, e sobretudo muito continuamente, a simples alteração naquele que transporta a bola cria problemas na reacção do adversário que pressiona. Assim, trocando rapidamente a bola, troca-se rapidamente de portador da bola e obriga-se o adversário a mudar rapidamente de alvo de pressão. O que isto provoca é a necessária desorganização defensiva de quem está constantemente a reagir a uma nova situação.

Jogando com toques curtos, muitas vezes inconsequentes, forçando até por zonas muito congestionadas, não é por isso necessariamente mal jogado. Muitas vezes, é o modo mais eficaz de desorganizar o adversário, sobretudo se feito com qualidade. Ouve-se vezes sem conta dizer, da boca de sábios que repetem a matemática dos livros, que, por exemplo, a bola deve rodar por toda a equipa e que, se vem de um lado, deve obrigatoriamente ir para o lado contrário, por ser o menos povoado. Isto não tem necessariamente de ser assim e só quem não consegue interpretar com clareza os lances e prefere que as pessoas ajam de um modo geral, sem a análise no terreno, de acordo com o que mandam as boas maneiras e os livros, é que o pode proferir. O jogo deve ser virado quando tiver de ser virado. Muitas vezes, o melhor é insistir pelo mesmo lado, obrigar a que o adversário, com muitos homens naquela zona, se precipite na tentativa de recuperar a bola e abra espaços. Aliás, virar o flanco ao jogo tem apenas o ganho momentâneo de fazer com que a equipa que tem a bola possa respirar, mas não consiste num verdadeiro problema para quem defende, que tem tempo para bascular e para se organizar enquanto percebe onde a bola vai cair. Com vários toques curtos sucessivos, torna-se muito mais difícil ao adversário a capacidade de reorganização. Assim, insistir em toques curtos e em espaços de difícil penetração, se feito com qualidade, é muitas vezes a solução mais indicada para um lance.

Compete à equipa que tem a bola fazer dela não apenas a ferramenta do seu ataque, mas um instrumento de desarrumação da defesa contrária. Para que o consiga, precisa de transformá-la num engodo. O adversário, porque tem necessariamente de recuperá-la, persegue-a obsessivamente. Mesmo quando define as zonas onde efectua essa perseguição, não tem como não a perseguir. Se quem tem a bola for capaz de fazer com que o adversário, enquanto a persegue, se desorganize, terá também conseguido com que a necessidade deste em persegui-la passe a possuir uma natureza perniciosa. Assim, é tendo a bola e gerindo-a de um modo particular que se pode fazer com que uma necessidade vital do adversário se transforme no seu próprio cadafalso.

Ter a bola e saber como fazer dela um engodo é, portanto, não apenas um modo de jogar, mas o modo mais eficaz de jogar. É por isto que a bola é tudo em futebol. É que, contra esta estratégia, não há uma que se lhe possa superar. Toda a equipa que não tem a bola tem de persegui-la, quer o faça com um bloco alto, quer o faça com um bloco baixo. Pode desposicionar-se muito ou pouco, mas desposicionar-se-á necessariamente. Trata-se de uma imposição própria do jogo. Como tal, se a equipa que não tem a bola tem de persegui-la e a equipa que a tem souber como fazer da bola um engodo, não há como a equipa que não tem a bola não fique à mercê da equipa que a tem e sabe o que fazer com ela. Essa equipa não terá, por isso, nenhuma estratégia alternativa com que contornar a estratégia de um adversário que tenha e saiba usar a bola, restando-lhe tão-somente confiar na sorte ou na desinspiração desse adversário. Não há assim nenhuma estratégia defensiva que possa contornar ou combater o engodo da bola e, por isso mesmo, não haverá outra competência colectiva que deva ser mais ambicionada que esta. Fazer da bola um engodo, eis a meta de qualquer equipa verdadeiramente ambiciosa.

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Respostas às Dúvidas de um Sábio

Sábio: O que é preciso um jogador ter para ser um bom central?

Alguém: Ser alto para ganhar bolas de cabeça e ser agressivo para desarmar os adversários.

Sábio: E quanto a um lateral, de que precisa um lateral?

Alguém: Um lateral, hoje em dia, tem de ser alguém com capacidade para fazer o corredor todo. Precisa, portanto, de ser rápido, de ter pulmão e de ser capaz de dar profundidade pela faixa.

Sábio: E para jogar no meio-campo, o que é preciso?

Alguém: É preciso correr e lutar muito, porque se está sempre em jogo.

Sábio: E para se ser um criador de jogo, também é preciso correr muito?

Alguém: Não. Um criador de jogo deve ser alguém com boa capacidade de passe e visão de jogo.

Sábio: E um extremo, o que precisa um extremo de ter?

Alguém: Um extremo precisa de ser rápido porque é na linha que há mais espaço e precisa de ter habilidade para criar desequilíbrios individuais.

Sábio: E um avançado, que características deve ter um bom avançado?

Alguém: Um avançado deve ser alguém com capacidade para marcar golos.

Sábio: Estou a ver. Então, se tivermos os centrais mais altos e agressivos, os laterais mais rápidos e resistentes, os médios mais lutadores, os criativos com melhor capacidade de passe, os extremos com mais velocidade e habilidade e os avançados que mais golos marcam, temos necessariamente a melhor equipa, certo?

Alguém: Não necessariamente. No futebol, nada é assim tão simples.

Sábio: Então? Há algo mais que os jogadores tenham de ter?

Alguém: Os jogadores não. Mas a equipa precisa de funcionar colectivamente.

Sábio: Não percebo. Se o central alto e agressivo ganhar as bolas todas com a sua altura e a sua agressividade, como é que os adversários serão capazes de criar perigo? Se os médios lutarem mais que os médios adversários, não será a equipa mais capaz que a adversária? Se os avançados marcarem mais golos, como é que se pode perder um jogo?

Alguém: Nada é assim tão literal. Há circunstâncias...

Sábio: Não entendo.

Alguém: Teoricamente, se tivermos os melhores em cada posição, temos a melhor equipa. Mas eles têm de se entender entre eles, não podem fazer tudo sozinhos.

Sábio: Mas a altura do central é do central, não da equipa. Assim como a sua agressividade. A velocidade dos laterais e a habilidade dos extremos é dos laterais e dos extremos, não da equipa. A capacidade de passe é dos criativos, não da equipa. A capacidade de marcar golos é do avançado, não da equipa. Se eles valem pelos seus atributos individuais, mas não podem fazer as coisas sozinhos, ou seja, usando os seus atributos individuais, em que é que ficamos?

Alguém: Ah! Mas eles têm de pôr os seus atributos individuais ao serviço do colectivo.

Sábio: Continuo sem perceber. Como é que se põe a velocidade que é própria de alguém ao serviço de uma entidade abstracta como o colectivo?

Alguém: Fazendo com que a velocidade tenha consequências positivas para a equipa.

Sábio: Sim, mas como?

Alguém: Fazendo com que o jogador não se valha apenas por ela.

Sábio: Ah, mas então isso significa que o melhor extremo, aquele que é mais rápido e habilidoso, não se pode, para que a equipa em que joga seja a melhor, valer apenas da sua rapidez e da sua habilidade.

Alguém: Sim, assim parece.

Sábio: Então de que tem de se valer mais?

Alguém: Não sei.

Sábio: Pois, bem me parecia. Parece que afinal o melhor extremo tem de ter, além de habilidade e velocidade, algo mais. Mas que coisa misteriosa é essa que ele tem de ter além da habilidade e da velocidade?

Alguém: Não sei. Tem de ser colectivamente eficaz, talvez.

Sábio: Sim, mas o que significa isso? De que atributos necessita um jogador para ser colectivamente eficaz?

Alguém: Não sei. Não consigo formular verbalmente uma resposta a essa pergunta.

Sábio: Já calculava que não. Só tenho mais uma dúvida. Disseste que o melhor defesa era o mais alto e o mais agressivo, que o melhor lateral era o que tinha mais velocidade e pulmão, de modo a ter capacidade para fazer o corredor todo, que o melhor médio era o que lutava mais, que o melhor criativo era o que passava melhor e o que tinha melhor visão de jogo, que o melhor extremo era o mais veloz e o mais habilidoso, e que o melhor avançado era o que marcava mais golos, certo?

Alguém: Certíssimo.

Sábio: E o que é preciso para se ser jogador de futebol?

Alguém: ?!?!?!