domingo, 19 de agosto de 2012

Benzema, os Avançados, e a Ilusão dos Números

Não foi sem controvérsia que, após o desafio que opôs espanhóis a italianos, a contar para a primeira jornada da fase de grupos do europeu deste ano, José Mourinho declarou que a Espanha, jogando sem um avançado de raiz, tinha sido praticamente inofensiva. Tive oportunidade de dizer que as declarações de Mourinho não faziam muito sentido, sobretudo tendo em conta que o avançado, no seu Real Madrid, funciona de modo muito pouco convencional, e que tal parecia muito mais uma bicada a Guardiola do que propriamente algo em que acreditasse. Entretanto, a Espanha sagrou-se campeã europeia, e realmente só foi inofensiva quando jogou com um avançado. O equívoco de Mourinho é, porém, pouco pertinente, para o assunto deste texto, embora sirva para lançá-lo.

Quando Mourinho chegou a Madrid, Gonzalo Higuain foi a sua primeira escolha. O argentino garantia velocidade de execução, profundidade nas costas das defesas adversárias, e bastantes golos. Quando se lesionou, o francês Karim Benzema, até então suplente e pouco utilizado, assumiu a posição. O jejum de golos, e as críticas de que foi alvo, fizeram com que Mourinho fosse ao mercado, em Janeiro, e trouxesse Adebayor. Felizmente para Benzema, Adebayor não pareceu conseguir dar à equipa o que Higuaín dava, e foi então que se começou a perceber que Benzema, mesmo não marcando, permitia coisas ao Real Madrid que o avançado togolês não permitia. Mesmo sem os golos do francês, Mourinho apostou nele e o rendimento colectivo não se ressentiu. Por linhas tortas, percebeu o técnico português a dada altura, por exemplo, que, com Benzema em campo, o rendimento de Ronaldo era muitíssimo superior. Quando Higuaín voltou, esta variável tinha adquirido uma importância de tal modo extrema que o francês, mesmo não marcando tantos golos quantos o argentino, mesmo parecendo passar ao lado do jogo muitas vezes, nunca mais voltou a sentar-se no banco. Benzema, ao contrário de Higuaín, garante movimentos de aproximação, linhas de passe, qualidade técnica em espaços reduzidos. Isto permite ao Real um jogo mais apoiado numa fase adiantada no terreno, uma muito melhor competência entre linhas, e, acima de tudo, a desocupação da profundidade que permite a Ronaldo todas aquelas diagonais da esquerda para o meio. Por força da lesão do seu avançado de eleição, descobriu Mourinho que a sua equipa funcionava melhor com um avançado de características diferentes, um avançado que, acima de tudo, não fosse rigorosamente, no verdadeiro sentido da palavra, e em cada momento do jogo, um avançado.

Se houve coisa em que o Real Madrid melhorou, nesta segunda época, foi na competência em ataque organizado, no último terço do terreno. Ao contrário do que se passou na primeira época, em que a equipa apenas conseguia romper blocos defensivos densos através de lançamentos para as costas da defesa ou através de desequilíbrios individuais, o Real passou a conseguir fazer a bola entrar entre a linha defensiva e a linha média dos seus adversários, passou a conseguir atrair momentaneamente defesas para perto dos médios, quebrando as linhas defensivas com maior frequência, e passou a conseguir complementar isso com as entradas de terceiros (normalmente os extremos, e principalmente Ronaldo) nas costas das defesas. Tal competência só foi possível porque o avançado da equipa, o jogador responsável por jogar na jurisdição dos defesas centrais, não era um avançado cujas movimentações típicas pediam a profundidade, mas um avançado com características diferentes, capaz de vir dentro, de combinar com maior qualidade com os médios, e com maior apetência para segurar e tabelar do que para aproveitar as costas das defesas. Por ser o avançado que é, Benzema permitiu ao Real, enquanto equipa, que fosse mais competente. Com isso, não se terá notabilizado individualmente, em termos de golos, como naturalmente um avançado como Higuain se notabilizaria. Enquanto equipa, o Real Madrid de Mourinho melhorou, de uma época para a outra, principalmente porque passou a jogar com um avançado que não se comporta como a maioria das pessoas acha que os avançados se devem comportar.

De certo modo, portanto, a ligeira melhoria da equipa deveu-se à utilização de uma estratégia absolutamente idêntica àquela que o Barcelona de Guardiola, de forma provavelmente mais enfática, preconizou no ano anterior, uma estratégia que, para muitos, é o calcanhar de Aquiles dos catalães, e que, para muitos também, incluindo o próprio Mourinho, a fazer fé nas suas palavras, era o grande problema da selecção espanhola neste europeu. É verdade que Benzema é um avançado de raiz. Mas não foram os seus comportamentos de avançado típico que permitiram à equipa tal salto evolutivo; foram antes os mesmos comportamentos que qualquer médio, ou qualquer jogador que não jogue habitualmente como avançado, naturalmente exibe quando posicionado na frente de ataque. Apesar de ser avançado, foi por Benzema ter qualquer coisa de médio (se é possível falar assim) que o Real Madrid se tornou melhor equipa. Mourinho, mesmo que o não saiba, mesmo que o critique por naturalmente lhe lembrar o estilo do rival, deve boa parte do seu sucesso em Espanha a algo que, embora de modo mais radical e mais conscientemente, o Barcelona de Guardiola desde há muito procura idealizar.

Antes de terminar, queria desviar-me ainda do assunto principal deste texto, e reflectir um pouco sobre números. Como é sabido, acho que as estatísticas, em futebol, não só não valem nada como são, muitas vezes, enganadoras. No final da época passada, tentei argumentar que a semelhança entre os golos marcados por Real Madrid e por Barcelona não implicava competências ofensivas semelhantes, e tentei demonstrar que essa semelhança de golos se deveu a um final de época em que, sem a pressão de títulos que já não se podiam conquistar, havia objectivos individuais a atingir. Do mesmo modo, fui dizendo ao longo desta época que, apesar de ser o Barcelona, pelos pontos que ia perdendo, quem parecia estar menos consistente, era o Real quem, na verdade, tinha mais dificuldades para vencer os seus jogos. Obviamente, mantenho essa teoria. Para muita gente, não só o campeonato como os números apresentados no final da prova são testemunhos inequívocos do meu engano. Foi por isso que comecei este parágrafo por dizer que os números, além de não valerem nada, costumam enganar. Quem olhar para eles em bruto, naturalmente verificará que a equipa comandada por José Mourinho, além de ter tido mais 4 vitórias que o Barcelona, marcou também mais 7 golos (121 contra 114). Para esses, o Real é talvez mais competente, em termos ofensivos, do que o Barcelona. A minha opinião é de que essas pessoas estão enganadas. É que, apesar de ter marcado mais golos, e apesar de ter obtido mais vitórias, o Real Madrid teve mais dificuldades do que o Barcelona em vencer os seus jogos. Como é isto possível? É o que pretendo demonstrar de seguida.

 Ora, comecemos pelas vitórias. O Real Madrid somou 32 vitórias, contra 28 do Barcelona. Das 28 vitórias dos catalães, 22 começaram a ser construídas na primeira parte. Ou seja, a vantagem obtida na primeira parte não mais voltou a ser anulada. Significa isto que 79% dos jogos ganhos pela equipa de Guardiola começaram a ser ganhos logo de início. Dos restantes 6 jogos, 2 foram resolvidos antes dos 70 minutos, 3 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 1 apenas depois dos 80, mais concretamente o jogo contra o Atlético de Madrid, em que os madrilenos anularam a vantagem dos catalães a meio da segunda parte e obrigaram a um segundo golo aos 81 minutos. Quanto ao Real Madrid, das 32 vitórias, apenas 21 começaram a ser construídas na primeira parte. Significa isto que, ao contrário dos 79% dos catalães, só 66% dos jogos ganhos pela equipa de José Mourinho começaram a ser ganhos logo de início. Dos restantes 11, 6 foram resolvidos antes dos 70 minutos, 3 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 2 depois dos 80. Embora não totalmente claros, até porque uma vantagem de 1-0 desde o primeiro minuto não é bem uma vantagem segura, estes dados permitem desde logo perceber uma tendência: a equipa catalã teve menos dificuldades em resolver os seus desafios, e teve por isso menos necessidade de acelerar para marcar mais golos. Mas passemos agora aos períodos de tempo em que os golos foram marcados. A consistência do Barcelona de que falava anteriormente não poderia ficar melhor espelhada do que na consistência com que os marcou em todos os períodos de tempo. Dos 114 golos, marcou 58 (51%) na primeira parte e 56 na segunda. Na segunda parte, marcou 21 entre o minuto 45 e o minuto 70, 19 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 16 depois dos 80. Ou seja, o Barcelona não teve períodos mais fortes e períodos mais fracos. Foi uma equipa consistente, com o mesmo grau de eficácia em todos os períodos das partidas, quer os adversários estivessem mais frescos ou mais cansados, quer o cronómetro se aproximasse do fim ou não. Já dos 121 golos do Real Madrid, marcou 51 (42%) na primeira parte e 70 na segunda. Na segunda parte, marcou 37 entre o minuto 45 e o minuto 70, 13 entre o minuto 70 e o minuto 80, e 20 depois dos 80. Ou seja, o Real Madrid foi claramente mais concretizador nas segundas partes dos jogos, tendo especial apetência por marcar ora no reatamento da partida, ora nos últimos 10 minutos. Como comprova a análise destes números, a equipa de José Mourinho foi muito menos consistente do que o Barcelona, e, apesar de mais golos e mais vitórias, teve maiores dificuldades em superar os seus desafios. Podíamos ainda fazer outro tipo de análises. Dos 79 golos que o Barcelona marcou antes dos 70 minutos, só 27% foram marcados entre os 45 minutos e os 70. Já dos 88 do Real, 42% foram marcados nesse período. Dos 35 golos que o Barcelona marcou depois dos 70, 46% foram marcados depois dos 80. Já dos 33 do Real, 61% foram marcados nesse período.

Dividi a segunda parte em três períodos de tempo desiguais propositadamente, porque tinha a impressão de que era nos últimos vinte minutos que o Real Madrid mais marcava. De facto, assim não é, e a equipa marcou tanto como no resto da segunda parte. Apesar disso, marca muito mais nos últimos dez minutos do que nos penúltimos, e isso deve ser levado em conta. No fim-de-semana em que recomeça a Liga Espanhola, é bom que se tenha consciência destas diferenças. O título da época passada, muito mais do que da qualidade apresentada, dependeu essencialmente do sacrifício e da força de vontade. Naqueles jogos em que a qualidade não chegou, foram esses os factores desequilibradores. Foi isso que fez a diferença, e foi por isso que o Real marcou mais e resolveu mais jogos na segunda metade das partidas do que o Barcelona. Ao contrário dos catalães, cuja qualidade ímpar lhes permitiu serem consistentes ao longo da época, o Real de Mourinho teve, muitas vezes, de fazer das tripas coração para vencer os seus desafios. Para compensar a menor qualidade, teve de sustentar as suas vitórias no desgaste dos adversários, na força de vontade da própria equipa, e em índices de concentração muito difíceis de manter sem motivações extraordinárias. De certo modo, a equipa excedeu-se nas segundas partes dos jogos porque a motivação de vencer um campeonato a este Barcelona era altíssima. Foi esse o factor decisivo. Para isso contribuiu também o facto de Mourinho raramente ter rodado a equipa, de ter apresentado quase sempre o seu melhor onze, e de ter contado com pouco mais do que 15 ou 16 jogadores. Numa época com mais lesões, tal seria impossível de realizar. Na época que agora começa, nem a motivação deverá ser a mesma, nem a improbabilidade de realizar uma época com tão poucas lesões se deve repetir. Embora o Real Madrid tenha melhorado, da primeira para a segunda época, no aspecto particular a que me referi acima, a qualidade geral do seu jogo continua a léguas da qualidade geral do jogo catalão. Uma série de factores, alguns deles difíceis de controlar, contribuíram para que pudesse sagrar-se campeão. Veremos de que modo se regenera agora.

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Um Problema de Sol

Como é Verão, vamos falar de sol e de coisas que pessoas não fazem por estar muito sol. Devo dizer que este texto, pelo menos em parte, estava escrito já há vários meses, e que apenas por desmazelo não foi publicado mais cedo. Reporta-se a uma partida do campeonato espanhol, que opôs o Málaga ao Real Madrid de Mourinho. Diamantino Miranda, esse arauto do disparate, foi o comentador de serviço do desafio, e disse, entre outros disparates certamente merecedores de referência, que as equipas do sul de Espanha eram, por norma, menos agressivas que as do norte. A razão pela qual Diamantino pensa assim, disse-o depois, prende-se com as diferenças climatéricas. Segundo o astuto comentador, equipas que estejam sediadas em regiões com climas mais quentes, com praias, sol e, provavelmente, raparigas de biquini, são compostas por jogadores mais tecnicistas, mas menos disponíveis para ajudar a defender. Por si só, a ideia de que o clima define características de um atleta é suficientemente estúpida para que lhe fique indiferente, e é disso que vou falar em seguida. Antes, porém, quero falar do argumento particular de Diamantino. Muito rapidamente, e até porque estendeu a ideia a outros países, a Portugal, por exemplo, o argumento faz depender a pouca agressividade defensiva de onze atletas da localização geográfica de uma cidade. Do que Diamantino se terá esquecido é que os onze jogadores que, segundo ele, eram pouco agressivos, não eram naturais de Málaga, nem tão-pouco de cidades do sul de Espanha. A menos que, a juntar ao primeiro argumento, mais geral, defenda Diamantino também que estes jogadores perdem agressividade de acordo com o sítio onde vivem, e que, por exemplo, Toulalan, que jogou toda a vida em Lyon, era agressivo até se ter mudado para Málaga, não percebo muito bem como é que pode defender o que defendeu.

Enfim, não quero perder muito tempo a discutir o raciocínio de Diamantino Miranda, pois não me parece fácil tentar perceber lógica onde ela não existe. Mas a ideia de que o clima influencia as características de um atleta merece algum debate, e sobre isso gostaria de dizer algumas coisas. Há coisa de dois anos, lançou o Filipe no Jogo Directo uma discussão parecida, defendendo que "há indícios claros de que a temperatura mexe, e bem, com o calor do jogo". Tive a oportunidade de comentar esse texto, e de participar na discussão. Ainda hoje penso do mesmo modo, e o comentário de Diamantino Miranda veio apenas tornar presente algo que me faz de facto bastante confusão. Como é que alguém pode sequer conceber que o clima tem influência directa no tipo de futebol que se pratica em determinado sítio? Na verdade, talvez sem se aperceber, o Filipe defendia duas coisas diferentes: primeiro, que uma equipa não se consegue comportar como se comporta habitualmente, se a temperatura for consideravelmente mais alta; em segundo, que os brasileiros jogam de modo mais "acalorado" porque o clima assim o propicia. O primeiro caso não se insere sequer no mesmo tipo de discussão: qualquer equipa europeia que vá jogar a 2000 metros de altitude, com baixas concentrações de oxigénio, tem desempenhos inferiores, e não consegue manter o ritmo habitual. Não é propriamente a temperatura, mas sim qualquer condicionante externa que modifica o comportamento habitual dos jogadores, que estão preparados para responder em determinadas condições e têm dificuldades imediatas em adaptar-se a condições novas. O "calor" do jogo, nesse primeiro caso, é determinado pela habituação, ou falta dela, e não porque a temperatura desempenhe um papel providencial. Mas é o segundo caso que mais interessa, pois é sobre ele que as pessoas mais opiniões engraçadas têm.

Existe, aliás, a tendência para achar que não é só o futebol, mas todo o tecido social, que é reflectido pelo clima de um país. Acho tal conclusão, como deverão calcular, um profundo disparate. Para muita gente, os países mediterrânicos são menos produtivos, em geral, porque são países com climas temperados, e é o clima que se regista nesses países que faz com que as pessoas sejam mais preguiçosas, mais irresponsáveis, mais inconstantes, e mais emocionais. O raciocínio de quem pensa assim é mais ou menos o seguinte: as pessoas vivem debaixo de temperaturas altas toda a vida, e isso frita-lhes as ideias. Enfim, achar que a temperatura é responsável pela definição do carácter de um povo é tão ridículo que chega a ser difícil falar sobre isso. As características gerais de um povo - se é possível, de facto, traçá-las - são definidas ao longo de séculos de História, e influirá mais no tipo de pessoas que os portugueses são, para usar o exemplo de Portugal, o facto de termos uma tradição católica profundamente enraízada, ou o facto de termos sofrido certos acidentes históricos, do que o facto de vivermos à beira-mar, com um clima ameno. O ser humano é uma criatura de hábitos, e as pessoas comportam-se como vêem os outros comportar-se. Se o clima em Portugal mudasse subitamente, e passássemos a ter um clima nórdico, a geração seguinte seria exactamente igual à geração seguinte que viria, caso isso não acontecesse. Quem fala em portugueses, fala noutros povos quaisquer. Se a temperatura, ou a latitude, fossem determinantes, ingleses e irlandeses seriam praticamente iguais.

A ter alguma influência no carácter de um povo, o clima tem uma influência reduzidíssima. Se assim é, menor será ainda essa influência em qualquer manifestação cultural desse povo. O futebol, enquanto manifestação cultural, não foge à regra. O futebol praticado numa determinada região do globo difere do futebol praticado noutra região por várias razões. Primeiro, porque são manifestações culturais de povos diferentes, com culturas diferentes, com preocupações diferentes, com legados históricos diferentes, com estruturas morais diferentes. Depois, e sobretudo por isso, porque o próprio futebol cria uma determinada tradição. Por que é que os italianos são mais defensivos? Porque, enquanto povo, são mais conservadores, mais reservados, mais precavidos? Obviamente que não. Porque, a dada altura, os modelos defensivos italianos começaram a ter sucesso, e criaram escola. A tradição futebolística de um país é talvez o factor mais relevante na definição do tipo de futebol que se pratica num país. Que causa está por trás do futebol de toque da Espanha, nos últimos anos? Um trabalho de fundo que modificou radicalmente a identidade do futebol espanhol, o privilégio pela inteligência e pelo talento. E no Brasil, por que é que no Brasil o jogo é tão "acalorado", há tanta irresponsabilidade táctica, e há tanto jogador talentoso? Não é por causa do calor, que faz com que os jogadores tenham as emoções à flor da pele, assim como é o calor que leva os miúdos para a praia e para as ruas, onde aprendem a jogar? Claro que não. São as condições sociais, a cultura do país, o fundo católico, etc.. Será a irresponsabilidade táctica característica do futebol brasileiro assim tão diferente da irresponsabilidade táctica de outros países sul-americanos? Não é. E o que dizer da irresponsabilidade táctica dos britânicos? É uma irresponsabilidade diferente da dos brasileiros, mas ainda assim é irresponsabilidade. Como explicá-la, se o clima não é "acalorado"? Essencialmente, porque a tradição futebolística na Grã-Bretanha não conheceu praticamente evoluções, nos últimos 50 anos, e porque no futebol (e no desporto, em geral) britânico se tendem a privilegiar atributos atléticos.

Acreditar que a temperatura (e o sol, em particular) determina o tipo de futebol que se pratica num certo país é não perceber nada de futebol, e é não perceber nada de seres humanos. O futebol, como todas as expressões de um povo, reflectem em parte o tecido histórico, cultural, religioso, e social desse povo. Mas, em si, é uma prática isolada, que pode, a qualquer altura, seguir um trajecto completamente distinto, sem qualquer relação directa com esse tecido. Estes dois tipos de factores são aqueles que, a meu ver, melhor explicam as distinções entre os vários tipos de futebol que se praticam pelo mundo. O clima, ou qualquer factor ambiental, não entra em nenhum deles. Não é sequer um factor secundário; não influi sequer na personalidade dos indivíduos que compõem esse povo, quanto mais nas suas práticas. Pode, quando muito, num passado muito remoto, ter ajudado a que determinados povos se dedicassem mais a umas actividades do que a outras, optassem por um determinado estilo de vida e não por outro, e que a personalidade desse povo - que foi sendo criada paulatinamente, ao longo dos tempos - tenha então sofrido inflexões decisivas em determinado período da sua formação por força do clima em que se vivia. Mas isso nem uma influência indirecta é. Se, a partir de agora, começasse a nevar durante todo o ano na península ibérica, e fizesse sol na Islândia, seriam preciso inúmeras gerações, e vários séculos para que os islandeses passassem a ter tradição futebolística, e os portugueses e os espanhóis perdessem a deles. A influência dos factores ambientais é, na melhor das hipóteses, uma influência remota, e só com muita boa vontade é que se consegue aceitar que Diamantino Miranda e outros que, como ele, acreditam em tais disparates, não estejam ainda hospitalizados.