terça-feira, 25 de setembro de 2012

A Cabecinha de Mascherano e o Treino de Certas Habilidades

O jogo é o Barcelona-Granada, da última jornada da Liga Espanhola, e o lance ocorre já no final da partida, antes, porém, de o Barcelona chegar à vantagem. O Barcelona não fez um jogo extraordinário, denotando uma vez mais pouca elasticidade, coisa que Tito Vilanova parece não compreender, ao não abdicar do seu 433 rígido, com extremos que servem praticamente apenas para dar profundidade à equipa. Os seus pupilos dominaram a partida, criaram algumas ocasiões de golo, mas não conseguiram desmanchar a defesa do adversário como tão bem o faziam no passado. Tudo melhorou quando Xavi entrou e, sobretudo, quando Tito Vilanova, ao trocar Adriano por Tello, experimentou, pela primeira vez desde que está ao comando da equipa, o 343 losango de Guardiola. Para bem do futebol, seria bom que Tito tivesse percebido aquilo que conseguiu, ao mexer assim no jogo. A partir desse momento, sobretudo, o jogo desenrolou-se praticamente apenas dentro da área do Granada e à saída dela, com o Barça a conseguir muitas combinações curtas em zonas bastante avançadas e a conseguir pressionar muito mais alto. Os últimos 15 minutos foram os únicos que valeram mesmo a pena, e, aí sim, voltou a pairar sobre Camp Nou a aura de Pep Guardiola.

A vitória acabaria por chegar, muito naturalmente, mas não sem que antes a equipa passasse por um susto, no único lance, em todo o jogo, em que, de facto, o Granada podia ter facilmente chegado ao golo. Tito Vilanova e os mais conservadores até poderão concluir que tal ocasião, por ter acontecido precisamente numa altura em que havia menos homens atrás, é consequência do risco que o 343 representa. Estão enganados. Trata-se de um lance de vantagem numérica defensiva, que só por força de um erro individual pôde ter expressão. E erros individuais tanto acontecem em defesas a 3 como em defesas a 4, sobretudo se Mascherano estiver em campo. Confesso que não consigo compreender a admiração que se sente por este argentino, nem o entusiasmo que continua a gerar nalgumas franjas de adeptos, principalmente depois de errar tão flagrantemente e com tanta regularidade. Enfim, continua a haver muita coisa para mudar no jogo. Falemos do lance.


O filme não mostra o que antecede o passe que isola o avançado do Granada, nem permite perceber os comportamentos de Song e de Mascherano, pelo que tenho de descrevê-los. O Granada sai em contra-ataque, com a bola a cair junto à linha, do lado direito. Song, muito bem, acompanha o lance, não caindo no erro de tentar o desarme, até porque o adversário estava praticamente isolado. Mascherano acompanha a jogada de perto, e atrás dele vem um segundo atacante do Granada. Do outro lado, um terceiro defesa do Barça fecha o meio, garantindo a superioridade numérica. Não querendo forçar o desarme, Song obriga o portador da bola a recuar, permitindo a recolocação de Mascherano ao meio, em cobertura, mas o argentino, por qualquer paragem cerebral que me custa a compreender, abranda o passo, esquece a necessidade de ir fazer a cobertura a Song, e permite que o segundo atacante lhe passe nas costas, abrindo a possibilidade ao portador da bola de fazer o passe entre Song e Mascherano. É precisamente aí que o filme começa, e quem o veja pode até pensar que Mascherano chega atrasado para cortar essa linha de passe. Não é verdade. Mascherano pensou foi noutra coisa, e não compreendeu o que o lance exigia dele, permitindo que uma jogada completamente controlada, de 2 atacantes para 3 defesas, se transformasse de repente numa jogada de 1 para 0.

Que Mascherano tem dificuldades a interpretar lances de futebol já não deve ser novidade para ninguém. Aquilo de que me apetece falar, contudo, é de uma ideia geral de treino segundo a qual se acredita que os jogadores aprendem pelo treino a corrigir as suas capacidades interpretativas. Acredito que o treino pode melhorar muita coisa (capacidades técnicas, físicas, tácticas, etc.), mas sempre duvidei da capacidade do treino para melhorar um certo tipo de capacidades muito específicas, e que tem sobretudo a ver com a leitura de lances não-padronizados. Ou melhor, até posso aceitar que o treino possibilite essa melhoria, mas nunca a curto ou médio prazo, e somente mediante um tipo de treino muito diferente daquele em que a esmagadora maioria dos treinadores acredita. Quando digo a esmagadora maioria, não estou a exagerar; é mesmo a esmagadora maioria. Os defensores daquilo a que se convencionou chamar "periodização táctica", por exemplo, gostam de acreditar que são a vanguarda do treino, que são aqueles cuja metodologia é a mais moderna possível. Mas qual é a grande mais-valia da periodização táctica? A capacidade de mecanizar comportamentos colectivos contextualizados, mediante uma ideia de treino por tentativa e erro. O problema é que isso, não obstante a diferença para outras metodologias mais antigas, não contempla nem um décimo das situações de jogo que um jogador encontra. Por tentativa e erro pode-se ensinar um jogador a comportar-se em muitas situações típicas, mas não se pode ensinar um jogador a interpretar situações atípicas. E o problema é que o futebol é um jogo essencialmente de situações atípicas. É sobre isto que falta reflectir. De que modo poderia um treinador ensinar a Mascherano que, naquela situação, deveria ter ido proteger rapidamente as costas de Song, garantindo a permuta de funções, e inviabilizando um passe para as costas da linha defensiva? Com que exercícios de treino é que, repetindo-os muitas vezes, o argentino ficaria preparado para responder melhor a esta situação? A resposta é fácil: com nenhuns! A interpretação não é uma habilidade como as outras, e não pode ser cultivada do mesmo modo que as outras o são. Nenhuma metodologia convencional de treino (e, sim, a periodização táctica, não obstante as diferenças significativas para modelos de treino mais primitivos, é uma metodologia convencial, pela simples razão de entender o jogo exactamente do mesmo modo que os outros modelos o entendem, ou seja, como um jogo de situações típicas como o basquetebol, o voleibol, o andebol, ou o futsal) é capaz de trabalhar, a breve ou a longo prazo, as habilidades interpretativas. Para que um jogador melhore as suas habilidades interpretativas (isto é, no fundo, a sua decisão em lances para os quais o treino não o mecanizou, ou seja, lances que não exigem respostas tipificadas), tem primeiro de compreender o jogo, de compreender aquilo que a cada momento é o melhor a fazer. Só um tipo de treino centrado num certo culto da decisão, um tipo de treino não-especializado, cuja preocupação central seja não a criação de padrões de comportamentos, rotinas colectivas e especialistas para cada posição, mas sim a compreensão daquilo que é o jogo a cada momento, só um tipo de treino assim é capaz de melhorar este tipo de habilidades. Um tipo de treino assim não tem propriamente uma metodologia própria, à qual vem filiado; tem, isso sim, uma concepção do jogo de espécie diferente, uma concepção do jogo que nenhum dos outros tipos de treino, sejam os mais tradicionais, seja os mais modernos, tem, e que consiste em entender o jogo, em termos teóricos, de modo completamente distinto e inovador.