quarta-feira, 6 de março de 2013

A Imponderabilidade dos Detalhes

Para muitos, o futebol distingue-se de outros desportos por ser um jogo de detalhes, isto é, porque os detalhes, ao contrário do que acontece em outras modalidades, podem ajudar a definir um vencedor. É verdade que, sendo o jogo de futebol um jogo com poucos golos, com "pontuações" baixas, quando comparado com outros jogos, tal distinção faz algum sentido. Mas não faz menos sentido pensar que são precisamente as equipas que mais fazem para depender menos dos detalhes que melhor estão preparadas para o sucesso. Parece haver, portanto, duas maneiras de reagir a esta crença: acreditar na fatalidade de que os jogos se definem pelos detalhes e trabalhar de modo a que a equipa esteja o melhor preparada para lhes responder, ou acreditar que os detalhes, podendo definir um vencedor, dificilmente o definem a longo prazo, e trabalhar de modo a que a imprevisibilidade dos detalhes tenha a menor relevância possível.

Por cá, como deve ser sabido, acreditamos mais na segunda solução. Que muitas vezes, sobretudo ao mais alto nível, os jogos se definem por um erro circunstancial, um mero acaso, uma má decisão do árbitro, uma precipitação, ou um golpe de génio, é evidente. Que a melhor maneira, porém, de responder a isso passe pela preocupação em estar o melhor preparado para esses momentos é que já não me parece tão evidente. Ninguém, no seu mais perfeito juízo, pode acreditar que consegue controlar todos os detalhes do jogo, e muito menos pode um treinador achar que, por mais que treine certas situações, os seus jogadores não vão falhar nesse mesmo aspecto. Sempre me pareceu cobarde condenar um golo falhado com a baliza aberta, ou um penalty mal batido. Erros acontecem, e todos os jogadores, por melhores que sejam, erram. Alguns acreditam que, se trabalharem muito, os jogadores erram menos. Tenho as maiores dúvidas de que muito treino implique melhorias a esse nível. Os lances são, sistematicamente, diferentes; as situações de jogo sistematicamente atípicas. Na minha opinião, treinar o detalhe é absolutamente inútil. Treinar a equipa, então, para que faça a diferença nos poucos momentos em que se define o jogo, negligenciando tudo o resto, parece-me francamente retrógado.

Dito isto, não acredito que seja assim que José Mourinho trabalha. O seu Real Madrid, no entanto, é talvez das equipas que mais parece depender da lotaria do detalhes, actualmente. Foi assim nas últimas semanas, sobretudo na eliminatória da taça do Rei frente ao Barcelona, e na eliminatória contra o Manchester United, mas tem sido assim também desde que chegou a Espanha. Não acreditei, por isso, no final da primeira época, que pudesse ganhar uma competição de regularidade, como o campeonato interno, em que os detalhes acabam por não ser tão determinantes quanto numa competição a eliminar, mas a verdade é que a equipa se conseguiu superar, encarando cada jogo como uma final, mantendo índices de concentração sempre elevados. Como disse também atempadamente, tal só foi possível porque a motivação de bater o Barcelona para a Liga era enorme. Sem isso, não teriam sido capazes de vencê-la, precisamente porque não são uma equipa para ganhar regularmente, como o exige um campeonato interno. Conseguiram superar-se no ano passado, mas não demoraria para que voltassem ao que verdadeiramente são: uma equipa de grandes jogos, de competições a eliminar. O fraco campeonato do Real Madrid não é, por isso, minimamente surpreendente. Este é que é o verdadeiro Real Madrid, não o do ano passado. É um Real Madrid banal numa competição de regularidade, que perde pontos e joga mal com adversários acessíveis, mas um Real Madrid muito competitivo sempre que o desafio é maior. Foi assim que Mourinho preparou a equipa desde que chegou, e é agora, ao final de três anos, que ela melhor espelha o trabalho a que foi sujeita.

Hoje, em Old Trafford, jogou-se o jogo para o qual o Real Madrid de Mourinho foi preparado desde o princípio, um jogo tacticamente fechado, que desde cedo se percebeu que penderia para o lado dos que falhassem menos, e que se resolveria pelos detalhes. O Manchester nunca pareceu muito incomodado em conceder a iniciativa ao adversário, até porque tinha a vantagem na eliminatória, e o Real ia tentando, com pouquíssimo engenho, e mais preocupado em aproveitar uma distracção de um adversário, uma bola parada, um lance de génio de algum dos seus jogadores. Até à expulsão de Nani, o Real Madrid nunca conseguiu criar as suas próprias situações de golo. Nunca conseguiu modificar as coordenadas do jogo estabelecidas pela equipa inglesa. Nunca conseguiu transformar um jogo fechado, que só se modificaria naturalmente na sequência de um detalhe, num jogo que se pudesse decidir por outra coisa que não por um detalhe. É este, aliás, o código genético desta equipa. Foi assim que foi eliminada o ano passado pelo Bayern, e era assim que, muito provavelmente, ia ser eliminada este ano nos oitavos de final, não fosse precisamente o detalhe de uma expulsão absurda a modificar a partida.

Há boas probabilidades de, nos próximos dois anos, José Mourinho não dizer uma única palavra acerca de um certo escândalo num certo estádio inglês, como tantas vezes disse acerca de um outro escândalo num outro estádio inglês, mas hoje o seu Real apurou-se porque foi feliz nos detalhes. Era, aliás, a única forma de se ter apurado, tivesse sido um detalhe externo ao jogo, como uma decisão de um árbitro, tivesse sido, pura e simplesmente, um lance de bola parada, uma escorregadela de um defesa, um erro infantil de alguém que não costuma errar. Foi assim que eliminou o Barcelona da taça do Rei, e foi assim que eliminou hoje o Manchester. Foi feliz nos detalhes. Isto porque, nesta história dos detalhes, tem mais sucesso quem é mais feliz, não quem é verdadeiramente melhor. O Real Madrid, hoje, foi feliz. O ano passado, diante do Bayern, não o foi. Como de resto, raramente o foi, desde que Mourinho chegou a Espanha, com o Barcelona. Mourinho preparou a equipa para ser competitiva, e é-o. Mas não a preparou para saber contornar a imponderabilidade dos detalhes. Se hoje foi feliz, amanhã pode não sê-lo, como não o foi no passado. É tudo uma questão de felicidade, e isso é pouco, numa equipa como aquela. Pode, com certeza, chegar para ganhar a Champions, mas uma competição como esta, como o Chelsea demonstrou o ano passado, é tão imponderável que isso não significa nada. O jogo medíocre da equipa hoje em Old Trafford, incapaz de tomar as rédeas da partida, de obrigar o adversário a desmontar a defesa, pode, pelo resultado final, ter deixado os merengues muito felizes, mas demonstrou também, muito claramente, a vulgaridade de que é feita: tirando a qualidade do plantel, que não tem comparação com nenhum outro plantel no mundo, à excepção, talvez, do plantel catalão, o Real de Mourinho é uma equipa como tantas outras. E é pena que o seja.