sábado, 26 de outubro de 2013

Notas sobre alguns Avançados

Continua a prevalecer, no discurso acerca de avançados, a máxima simplista e redutora de que avançados servem para fazer golos, e jogadores que actuem nessa posição continua a ser avaliados de acordo com os golos que marcam, as oportunidades que têm para o fazer, ou, em suma, a capacidade que têm para aparecer nos momentos-chave das partidas. Isto é redutor porque os momentos-chave são uma ínfima parte do que acontece num jogo de futebol, o que significa que certos jogadores são avaliados por aquilo que produzem ou parecem produzir numa parte ínfima do jogo. Já aqui chamei a atenção, inúmeras vezes, para o erro analítico em que consiste pensar desse modo, mas a verdade é que as pessoas continuam a ser preguiçosas, continuam a ver o jogo como bem lhes apetece, dando apenas atenção aos momentos em que a bola ronda as balizas ou a emoção nas bancadas é mais intensa. Desse ponto de vista, nem sequer percebo por que se interessam tanto por futebol, nem percebo porque perdem 90 minutos a ver um jogo de futebol. Mais valia perderem apenas alguns minutos a ver os resumos dos lances mais relevantes. Pessoalmente, considero que essas pessoas não sabem ver um jogo de futebol e não têm, por isso, fundamentos nenhuns para analisar o que quer que seja. Um jogo de futebol é muito mais do que 6 ou 7 momentos por partida, em que a bola entra ou fica perto de entrar numa baliza, e um avançado é muito mais do que aquilo que aparece coligido nas melhores ocasiões de um jogo.


No lance do terceiro golo do Chelsea esta semana, por exemplo, Fernando Torres não toca na bola. E, no entanto, 80% do golo é dele. É-o porque é ele quem possibilita a Hazard passar com a facilidade com que passa pelo último defesa. Torres é um dos muitos mal amados do futebol actual, essencialmente porque é avançado, custou muito dinheiro, e não marca tantos golos como isso. Confesso que Torres não é o meu avançado predilecto, mas está longe de ser o trambolho com que é hoje em dia confundido. Duas coisas, a meu ver, contribuíram para que não facturasse no Chelsea como o fazia em Liverpool: o facto de as equipas jogarem de modo totalmente distinto (Torres era, em Liverpool, o único avançado de uma equipa que jogava, por sistema, em transição, não lhe sendo pedido mais do que algumas arrancadas por jogo, quando tinha espaço) e o facto de ter modificado substancialmente o seu corpo (a massa muscular actual de Torres não tem nada a ver com a que tinha quando chegou a Inglaterra), o que fez com que fosse perdendo agilidade e destreza técnica. À margem destas considerações, Torres continua a ser um avançado inteligente, sobretudo com espaço. Pode não ser um jogador extraordinário para funcionar como apoio frontal, mas é alguém que percebe muito bem as necessidades da equipa, em lances de pouca densidade numérica como sejam lances de contra-ataque típico. Neste tipo de situações, sabe geralmente o que fazer, protege-se muitíssimo bem da ratoeira do fora-de-jogo e é capaz de se adaptar rapidamente a mudanças de circunstâncias. Foi o que aconteceu neste lance. Acompanhou o lance até que Hazard ficasse de frente para o defesa e, nesse momento, iniciou o movimento nas costas do belga, criando a dúvida no defesa. Torres marcou dois golos, nesta partida, mas o seu melhor momento terá sido sem dúvida este.

Aceitar a última frase pode não ser fácil para toda a gente. Afinal, Torres não assistiu, não marcou. Nem sequer tocou na bola. E, no entanto, é bem possível que este golo seja mais seu do que qualquer um dos outros que marcou. É talvez sabido que, para mim, um avançado é como outro jogador de campo qualquer e deve fazer mais ou menos o que os outros jogadores de campo devem fazer, a saber, tomar boas decisões. É por isso que não me cativam alguns dos avançados mais mediáticos da actualidade, sobretudo aqueles que se destacam por serem combativos, irrequietos, brigões e possantes. Aprecio essas características se acompanhadas de qualidades técnicas evidentes e, acima de tudo, capacidade de compreensão do jogo. Da forma como entendo o jogo, jamais conceberia encaixar um avançado com as características do croata Mandzukic ou dos espanhóis Negredo e Soldado, jogadores por quem se pagou muito dinheiro. Mas também não conceberia encaixar outros, alguns dos quais muitíssimo queridos. Mario Balotelli talvez nem seja um bom exemplo, pois faz-me alguma confusão que a razão pela qual continua a ser colocado entre os melhores do mundo seja a irreverência. Aliás, o italiano é hoje o exemplo paradigmático de um erro muito comum no passado, o de se achar que a irreverência era sinónimo de talento. O raciocínio é mais ou menos este: a grande maioria dos jogadores talentosos são irreverentes; Balotelli é irreverente; logo, Balotelli é talentoso. O problema, claro está, é que mesmo que todos os talentosos fossem irreverentes isso não significaria que todos os irreverentes sejam talentosos. O conjunto dos irreverentes não coincide com o dos talentosos, e o facto de certos jogadores serem as duas coisas não implica que todos o sejam. Balotelli é irreverente, de facto, mas talento tem pouco.

Os dois avançados que, todavia, mais confusão me fazem hoje em dia, sobretudo pela diferença entre a real qualidade deles e aquilo que deles se diz, são o uruguaio Luis Suarez e o brasileiro Diego Costa. É curioso que, além de os achar parecidos em termos futebolísticos, acho-os muitíssimo semelhantes em termos de carácter. São avançados com mau feitio, que passam o jogo "picados" com os defesas contrários, sejam eles quem forem, que refilam em todos os lances, que se fazem de vítimas, que agridem por tudo e por nada, sem pudor, etc.. E, como jogadores, são avançados que raramente jogam de frente, que raramente servem de apoio frontal aos médios, que "metem" a cabeça no chão assim que recebem a bola. Tecnicamente, são ambos abaixo da média, não obstante conseguirem desembaraçar-se várias vezes em situações de um para um. Conseguem-no porque compensam a falta de técnica com um vigor físico impressionante. Seguram e protegem a bola não com a habilidade mas com os cotovelos, o corpo arqueado, e a disponibilidade física. Veja-se como conduzem a bola, por exemplo, e facilmente se perceberá que ela queima nos seus pés. Nada disto seria relevante, contudo, se soubessem ler o jogo, se fossem inteligentes e decidissem bem. Mas raramente o decidem. Vão marcando golos porque são, do ponto de vista atlético, muito fortes, e acima de tudo porque gozam da complacência de alguns árbitros (Suarez, embora beneficie muito de jogar em Inglaterra, até tem sido penalizado por algumas das suas acções, mas Diego Costa tem passado impune, quase sempre), porque os defesas adversários vão na cantiga e são incapazes de perceber que jogadores como Suarez e Diego Costa beneficiam de marcações apertadas, devendo antes dar-lhes algum espaço, e porque jogam em equipas em que se fomenta a ideia de que o avançado é um jogador que se deve desembaraçar sozinho. Veja-se a quantidade de ressaltos que ganham, a quantidade de bolas que ganham porque esbracejam e esperneiam, e a quantidade de golos que marcam com todos os músculos da cara contraídos. É a grande maioria. Tudo o que conseguem é fruto do esforço e da agressividade com que jogam, não da classe ou do talento que têm. E o esforço e a agressividade são daqueles atributos que, por si só, dependem sempre de factores extrínsecos para ser uma mais-valia: da interpretação dos árbitros, da atenção e da esperteza dos defesas e do sistema de jogo em que estejam inseridos. Numa equipa a sério, Luis Suarez e Diego Costa seriam sempre mais um problema do que uma solução.

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Passe e Devolução: A Versão Bávara

E depois do que se passou ontem em Manchester, já é possível dizer que o Bayern de Guardiola é melhor do que alguma vez foi o de Jupp Heynckes? A tareia monumental que os bávaros foram dar a casa do vice-campeão inglês, pondo o adversário à rabia a maior parte do tempo, não pode ficar indiferente a ninguém. O Bayern de Heynckes revelou-se letal, cirúrgico, mas não tinha a capacidade para subjugar, durante 90 minutos, os seus adversários. Era uma equipa forte nos detalhes, e que se fez valer da capacidade de concentração e de uma ambição colectiva extraordinária. Mas, para vencer o que venceu, para chegar onde chegou, teve de sofrer muito. O futebol dos bávaros, no passado, era sofrido; tudo era feito em esforço, em velocidade, e cada jogada representava o último lance da vida de cada um dos jogadores. O Bayern de Guardiola, em poucos meses, é o completo oposto. Continua uma equipa fortíssima, não parece ter perdido capacidade de concentração, mas passa o jogo inteiro a passear, como se estivesse a fazer a coisa mais fácil do mundo. A diferença é incomensurável. Ontem, em Manchester, o City andou atrás da bola, e o Bayern de Munique andou literalmente a recrear-se. Sabe esperar pelos momentos certos para atacar, sabe jogar com as expectativas (as próprias e as dos adversários), sabe gerir o ritmo do jogo e circular a bola a seu bel-prazer, e sabe que uma jogada é só uma jogada, que, se fizerem as coisas bem feitas, terão outras jogadas e outras oportunidades para chegarem ao golo. O futebol dos alemães está agora muito menos dependente da inspiração individual, da concentração de cada um dos jogadores e da afinação com que se entendem. Agora, os princípios organizadores são a participação, em cada lance, de todos os jogadores, a recreação colectiva e a criatividade. Até os jogadores mais dados ao individualismo parecem entreter-se e gozar de um estilo que preconiza as tabelas, o envolvimento a pares, os triângulos, os toques de primeira. Vemos os bávaros a fazer, já com alguma frequência, aquilo que, para muitos, só os catalães, por qualquer mistério insondável, sabiam fazer: passe e devolução, passe e devolução, passe e devolução. Vemos, por exemplo, Alaba a entrar pelo meio (uma novidade, no modelo de Guardiola), a envolver-se no trabalho de posse a meio-campo e a solicitar a bola entre linhas; vemos Ribery a ir de um lado ao outro do campo para perto de Robben para lhe dar uma opção curta, e até vemos Robben a procurar companheiros no meio com os quais tabelar.

Ontem, jogou Thomas Müller como avançado e, apesar de Luís Freitas Lobo ter insistido que aquela não era a melhor posição para o internacional alemão, foi muito por aí que o Bayern foi tão superior. Sem bola, Müller é um dos melhores jogadores do mundo. A sua capacidade de movimentação e a inteligência com que percebe o que deve fazer e para onde deve ir a cada momento fazem dele, possivelmente, a melhor opção para a posição de atacante, nesta equipa. Sem bola, Müller saiu invariavelmente de entre os centrais, ora para se aproximar do portador da bola, estivesse ele numa faixa ou no centro, ora para ocupar o flanco direito, permitindo a Robben invadir o espaço entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, por onde o Bayern depois progredia. Com isso, confundiu marcações, mas permitiu sobretudo soluções de passe inesperadas à sua equipa. Muito da dinâmica ofensiva bávara, ontem, se deveu ao extraordinário trabalho de Müller, ainda que Freitas Lobo tenha achado que ele nunca conseguiu entrar no jogo. Guardiola não pensa como a maioria dos treinadores, e não pensa decerto como Freitas Lobo. Para ele, há coisas mais importantes do que um determinado jogador tocar muitas vezes na bola. Ontem Müller terá sido dos jogadores mais importantes em campo, até pela liberdade que permitiu quer a Robben, quer a Ribery, e Guardiola não terá deixado passar isso. Que outro treinador, por exemplo, se daria ao luxo de tirar o melhor lateral direito do mundo da sua posição de origem para pô-lo no meio-campo, ainda por cima tendo tantas opções (e tão conceituadas) para ali? Que outro treinador escolheria o jogador mais baixo da equipa para jogar como médio-defensivo? Guardiola é diferente dos outros, e requer dos seus jogadores coisas diferentes. Com o regresso de Götze, Javi Martinez e Thiago Alcântara, é possível que Lahm volte a ser lateral, mas até ver foi o jogador que melhor cumpriu aquela posição. Onde me parece que Guardiola tem ainda que trabalhar muito (e pensar bem sobre quais os jogadores que melhor servem esse propósito) é no meio-campo. O meio-campo é a alma deste modelo e, neste momento, Schweinsteiger e Kröos são demasiado parecidos. O meio-campo funciona bem, tem a dinâmica certa e os princípios certos, mas falta-lhe criatividade. Posicionalmente, fazem de facto o que têm a fazer, não procurando a bola fora do bloco adversário, mas invadindo-o e solicitando-a entre linhas. Mas depois falta algum atrevimento para mantê-la dentro do bloco, para procurar procurar soluções difíceis e arriscadas, em espaços curtos. Invariavelmente, escolhem a opção mais segura. De Schweinsteiger, em abono da verdade, não esperava mais do que isso, e nunca me pareceu que pudesse ser outra coisa, no modelo que Guardiola quer implementar, que não médio-defensivo (agora já nem isso). Mas de Kröos, jogador que muito admiro, esperava outra coragem. Claro que ainda é cedo e que esse tipo de coisa ainda pode ser cultivada, mas Kröos, para já, não me parece dar tudo o que Guardiola precisa. Thiago Alcântara e Götze (ou eventualmente Ribery) poderão por isso trazer coisas diferentes ao meio-campo ofensivo do Bayern. Nenhuma destas observações é, contudo, relevante, se pensarmos na brutalíssima mudança operada por Guardiola em tão pouco tempo. Se, em poucos meses, foi capaz de pôr o Bayern a jogar de uma maneira tão distinta daquela com que se exibia antes, deve-se presumir que os pequenos defeitos que a equipa ainda tem se possam corrigir com o tempo. Seja como for, continuo por isso sem dúvidas de que o Bayern de Guardiola será a seu tempo aquilo que o seu Barcelona foi, uma equipa de passe e devolução perpétuos, capaz de subjugar qualquer adversário e capaz de conduzir cada partida de futebol como bem lhe aprouver. E, depois disto, continuará a ser possível defender que o modelo de Guardiola não é o mais avançado para um jogo como o futebol e que só resultou num sítio em que os jogadores eram perfeitos para esse modelo?