terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Virar o Flanco

Sendo um daqueles lugares-comuns mais repetidos, importa analisar a pertinência que envolve a necessidade de "virar o flanco". Como é sabido, simpatizo pouquíssimo com lugares-comuns e, sobretudo, com a ideia de que uma receita, verificando-se um sintoma, se deve aplicar indiscriminadamente. A maioria dos comentadores de futebol, ao ver uma jogada a ocorrer junto a uma das linhas, e uma grande aglomeração de jogadores nessa zona do campo, defende automaticamente que a equipa que tem a bola deve virar o quanto antes o flanco ao jogo, solicitando qualquer colega à largura do terreno. O motivo pelo qual o defendem é só um: a crença de que se deve atacar sempre por onde há menos adversários. É contra esta crença que este texto fará fogo.

O que se ganha realmente quando se vira o flanco? Dirão aqueles a quem os lugares-comuns pouca comichão fazem que se ganha espaço e tempo, senão mesmo a possibilidade de progredir imediatamente no terreno de jogo. Pessoalmente, aceito que se ganhem estas três coisas; o que já tenho dificuldades em aceitar é que alguma delas seja realmente aquilo com que uma equipa que ataca mais se deve preocupar. Para que serve o espaço e o tempo? E por que é que é melhor a bola estar uns metros mais à frente? A finalidade de um lance de ataque é, a cada instante, estar mais perto da baliza adversária do que no instante anterior? É ir tendo cada vez mais espaço? Não. Pelo menos em ataque organizado, a única finalidade, em cada acção ofensiva, é desposicionar o colectivo adversário, ou seja, melhorar as condições de ataque. Isso pode ser feito com muito ou com pouco espaço, em muito ou em pouco tempo, e de muito longe ou muito perto da baliza adversária. O que é que interessa progredir constantemente, se as condições em que isso é feito não são as melhores? Nenhuma das três coisas atrás mencionadas como benefícios de se virar o flanco são, portanto, minimamente relevantes para quem desenha um ataque. Resta, pois, saber se virar o flanco não acarreta ainda desposicionar o colectivo adversário ou melhorar as condições em que se ataca, os verdadeiros objectivos da equipa que tem a bola. E aí a minha resposta é: depende. Depende do posicionamento defensivo dos adversários, depende do posicionamento dos próprios colegas, depende do que estiver a ocorrer no flanco em que está a bola, depende do que estiver a ocorrer ou que é previsível que venha a ocorrer no flanco para onde a bola irá, depende das condições que houver para fazer a variação, etc.. Enfim, depende de todas as circunstâncias.

Normalmente, pensa-se em virar o flanco quando se ataca por um dos flancos, quando esse flanco está demasiado congestionado e quando há um colega solto, no flanco contrário, a quem é possível enviar a bola. Vê-se um jogador solto do lado contrário e assume-se imediatamente que essa é uma opção melhor do que tentar progredir por onde há muita gente. Mas será que o é? Na verdade, não é só a equipa adversária que tem pouca gente do lado contrário; por norma, é também quem ataca. Trocando o flanco ao jogo não se põe a bola apenas onde há um aglomerado de adversários menor; põe-se a bola também num sítio onde há menos colegas, entregando assim o lance à capacidade de um indivíduo. É verdade que, tirando a bola do flanco congestionado, se obriga o adversário a bascular, a desarmar a sua zona de pressão e a refazê-la noutro lado; mas também se dificulta o trabalho colectivo de quem ataca. Com menos jogadores, menos possibilidades de combinação existem. Se o adversário tem de se reorganizar, quem ataca tem também de reocupar posições, tem também de perceber que espaços sobram para invadir, qual a arrumação defensiva do adversário com que pode contar, etc. Para ser sincero, não vejo numa mudança de flanco comum ganhos significativos. Tira-se a bola de um sítio congestionado, mas não se tira vantagens disso. No fundo, é apenas uma forma de reiniciar a jogada, com a agravante de obrigar quase toda a equipa a ocupar rapidamente novas posições, o que provoca maior desgaste. Nos momentos imediatamente a seguir à variação do flanco, a equipa que tem a bola fica inclusivamente com poucas soluções de passe e quaisquer movimentos de aproximação são acompanhados do movimento de basculação natural dos defesas. Na verdade, não me parece ser melhor variar o flanco do que atrasar para um central, por exemplo. Ganha-se tempo e espaço, como com a outra alternativa, e sai-se da zona de pressão sem que os jogadores envolvidos sejam forçados a correr rapidamente para o flanco oposto para dar uma opção de passe ao colega que recebeu a bola.

De resto, há poucas situações em que a equipa adversária está mais desposicionada do que em acções de pressão. Pressionar implica sempre desposicionamentos, ainda que breves e ainda que instantaneamente corrigidos pelo colectivo. Nesse sentido, virar o flanco não é mais do que reiniciar a jogada de ataque e, por conseguinte, não é mais do que convidar um adversário que estava naturalmente desorganizado (ou que tinha tendência a desorganizar-se em cada troca de bola), por força da pressão que fazia sobre um dos flancos, se reorganize lentamente. Uma tabela, um passe vertical para um apoio entre linhas, uma pequena lateralização, um passe e uma devolução curta - tudo isto me parecem maneiras muito mais eficazes de ultrapassar uma acção de pressão junto a um flanco do que a simples variação de jogo. Evidentemente, há ocasiões em que nenhuma destas coisas é possível ou razoável. Nessas alturas, parece-me que a melhor forma de agir é recuar, dar no central, obrigar o adversário a desfazer a pressão, e recomeçar lenta e organizadamente a construção noutro sítio. Virar o flanco parece-me, por isso, uma das coisas menos indicadas quando a equipa que ataca se vê encurralada num dos flancos. Pode, é claro, ser a melhor decisão a tomar, mas apenas em circunstâncias muito particulares. Não se pode ainda esquecer que a organização defensiva do adversário, sobretudo se esse adversário for competente, depende essencialmente da posição da bola em relação à baliza que defende. Ou seja, essa organização só se desfaz no momento imediatamente a seguir à bola mudar de posição, altura essa em que, colectivamente, há um rearranjo no sentido de recuperar essa organização. Uma variação de flanco é apenas uma mudança do posicionamento da bola e implica, por isso, apenas um momento de reorganização defensiva. Dois passes curtos, por exemplo, implicam duas reorganizações defensivas. E implicam, por arrasto, mais tempo de desorganização do adversário. Se a verdadeira finalidade de uma cadeia de acções ofensivas é desposicionar o colectivo adversário, então virar o flanco é menos útil do que a maioria das outras acções. Se, em vez de variarem o centro do jogo quando não conseguem progredir por um flanco, as equipas se preocupassem a criar condições para sair de zonas de muita densidade populacional, através de movimentos de aproximação, de passes e devoluções, de tabelas, de movimentações constantes de quem não tem a bola, etc., seriam sem dúvida alguma equipas muito mais competentes. Como noutros casos, já era tempo de se perceber que certas ideias feitas acerca do jogo pouco sentido fazem, nos dias que correm. Este é só mais um caso.