segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

A Decisão de Talisca

Não é novidade, para quem visita este espaço com regularidade, que a velha máxima do chutar sempre que possível é algo que não me agrada particularmente. Ora, não é por o lance terminar com a bola no fundo da baliza adversária que um remate, quando se pedia outra acção, passa a ser uma boa decisão. O lance a que me reporto é o do segundo golo do Benfica no Dragão. Não obstante já muita coisa ter sido dita sobre o clássico e não obstante o mesmo ter acontecido há já algumas semanas, creio que o lance é especialmente útil para aquilo que proponho. A jogada terminou com Lima a empurrar a bola para a baliza deserta de Fabiano, mas foi tudo menos uma boa jogada. E, sobretudo, foi tudo menos uma boa decisão de Talisca, que continua a gozar de enorme admiração por parte da massa adepta dos encarnados sem que o justifique propriamente. Não querendo falar de Talisca em termos genéricos, até porque isso daria pano para mangas, posso dizer, essencialmente, que o seu perfil de decisão deixa muito a desejar. À excepção dos índices competitivos que tem conseguido apresentar, o que é notável para um jovem acabado de chegar à Europa vindo de um campeonato em que a competitividade é bem diferente, e à excepção de competências técnicas que muito decorrem desses índices competitivos admiráveis, Talisca não tem mostrado grande coisa. Não tem, aliás, mostrado - e isso parece-me claro - nada que justifique a euforia que se tem criado à sua volta. Mais uma vez, não fora os golos decisivos que marcou, e que muito se deveram, essencialmente, à capacidade competitiva que lhe reconheço, e não se falava dele como se fala actualmente. Mais uma vez, um ou dois lances por jogo são suficientes para a generalidade das pessoas formarem uma opinião. Mas, passando à frente, o que fez de errado Talisca no lance do segundo golo encarnado?



O remate em zona frontal é sempre apetecível, e é uma boa solução quando há espaço e, sobretudo, quando não há desequilíbrios causados pela movimentação dos colegas. Ora, é isso mesmo que Talisca não respeita, ou que pelo menos ignora. Ao contrário de muita gente, não creio que um jogador deva respeitar obrigatoriamente movimentações de colegas nas costas. Mas deve, pelo menos aproveitá-las. Depois do passe de Gaitan para Talisca, Enzo Perez apressa o passo para passar nas costas de Talisca de modo a criar superioridade numérica no flanco esquerdo, onde a defesa portista estava descompensada. Talisca não tinha que ter esperado por Enzo para lhe dar a bola, mas tinha que ter esperado por ele para jogar com a superioridade que ele ia criar e à qual os adversários iriam ter de reagir. Quando Talisca recebe o passe de Gaitan em zona central, tem à sua frente um defesa que o impede de progredir. Depois de contemporizar, por força dessa oposição, fica com mais um médio portista à ilharga. É nesta altura, quando já está francamente apertado, quando perdeu algum enquadramento para o remate e já sem sequer o equilíbrio perfeito, que se decide pelo remate, ignorando que o seu compasso de espera tanto permitira a aproximação de adversários como permitira o início da desmarcação de Enzo. Ao receber a bola, Talisca apercebeu-se que tinha apenas um adversário pela frente e que, possivelmente, teria espaço para rematar. Desde que recebeu a bola, não pensou em mais nada. Durante o tempo que perdeu a preparar esse remate, deveria ter mantido em aberto a possibilidade de tomar outra decisão.  Como tinha a ideia formada, não pensou em mais nada. Podia ter inclusivamente jogardo curto, entre linhas, em Gaitan, mas nem o viu. A melhor decisão, porém, era sempre esperar por Enzo, que ia criar o desequilíbrio na esquerda. Bastava a Talisca ter esperado mais um pouco e poderia jogar com essa desmarcação. Podia fazer o passe para que Enzo cruzasse já dentro da área (ou até para que pudesse rematar) ou podia jogar com essa desmarcação de outra maneira, esperando que Danilo se desposicionasse ao tentar adivinhar um eventual passe para Enzo. Como não pensou nisso, e como tinha o remate na cabeça desde que recebeu a bola, decidiu mal. Que o lance tenha resultado em golo não apaga a má decisão. Note-se, de resto, que o remate não saiu muito potente, como era natural que saísse nas condições em que se encontrava (tinha vários adversários à frente, a bola estava demasiado debaixo do seu próprio corpo, e o enquadramento não era perfeito), e que só um frango monumental de Fabiano, que defendeu com a cara, permitiu que aquela má decisão se transformasse numa recarga de Lima. Para muita gente, Talisca fez bem em chutar, uma vez que deu golo. O problema, no entanto, é o do costume: em situações idênticas, não só um remate naquelas condições dificilmente resultará em golo como a decisão de rematar naquelas condições e com um desequilíbrio prestes a ser criado por um colega dificilmente será a melhor decisão. 

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Curtas de Dezembro

1. Depois de uma época que só não foi exemplar por ter deixado escapar a Liga Europa, Jorge Jesus perdeu vários jogadores e começou a época com um plantel bem menos forte do que o dos últimos anos. O sorteio da Champions não ajudou, e o Benfica acabou eliminado das competições europeias mais cedo do que nos últimos anos. À margem das circunstâncias adversas, o futebol encarnado depende, mais do que nunca na era de Jesus, da qualidade individual, e é essa a principal crítica que lhe deve ser feita. Num modelo como o de Jesus, o mínimo desinvestimento tem um impacto significativo, e o desempenho ofensivo dos encarnados, esta época, é quase exclusivamente explicado pelos golos de Talisca, pelas arrancadas de Salvio e Gaitan, e pela qualidade de Enzo.

2. O Porto de Lopetegui é uma equipa de oito e oitenta. Tem um plantel formidável do meio-campo para diante; tem uma plantel banalíssimo do meio-campo para trás; tanto goleia como empata com o Boavista; tanto sufoca o adversário do primeiro ao último minuto como se deixa surpreender depois de estar a vencer por alguns golos de diferença. Agrada-me a atitude ofensiva da equipa e agrada-me a intenção de pressionar alto; desagradam-me, porém, as variações constantes de flanco, o excesso de vertigem e a incapacidade, mais ou menos geral, para controlar o ritmo de jogo. Não sei o que acontecerá na segunda metade da época, até porque, sobretudo numa prova de regularidade como é o campeonato, uma equipa assim tanto arrisca o fracasso quanto o sucesso.

3. Marco Silva está a fazer um trabalho interessante. Um clube como o Sporting deve ambicionar sempre o título. O que não pode fazer, num momento complicado em que não pode, de maneira nenhuma, competir com o investimento dos dois rivais e que vem na sequência de anos de crise desportiva, é anunciar publicamente essa ambição. Enquanto "outsider", o Sporting pode sempre intrometer-se nessas contas, como aconteceu o ano passado; enquanto candidato, dificilmente. Não tem plantel para isso e entra em campo pressionado para ganhar. Não obstante, Marco Silva tem apresentado bons indicadores. É verdade que ter Nani - que só por questões extra-desportivas não está a jogar num dos dez melhores clubes europeus - ajuda muito, mas a equipa tem comportamentos interessantes. Acima de tudo, é menos mecânica do que a equipa de Leonardo Jardim, que obteve o máximo do que poderia ter obtido a época transacta, e isso é já um indício do quanto poderá evoluir no futuro. Era importante agora, a meu ver, que dessem finalmente oportunidades a dois jogadores da equipa B que, por quaisquer razões, continuam na gaveta: Chaby e Iuri.

4. Em Espanha, o Real Madrid só não é campeão se não quiser. Dia sim, dia não, a imprensa portuguesa diz que Mourinho é o melhor do mundo. Mas basta ver as diferenças do Real de Mourinho para o Real de Ancelotti para se perceber que, no mínimo, a imprensa portuguesa é tendenciosa. Mourinho jogava com médios como Khedira, Granero ou Diarra. Chegou a jogar com Pepe no meio-campo. Modric nunca foi opção. Ancelotti joga só com dois médios: Modric e Kroos. Não é preciso falar de títulos para que se percebam as diferenças. Mesmo sem Ozil e sem Di Maria, jogando num sistema de jogo que nem sempre oferece uma boa rede de apoios, o Real é uma máquina de futebol de ataque. E isso tem a ver, acima de tudo, com as ideias de Ancelotti a respeito do seu meio-campo. É aí que é profundamente diferente de Mourinho. E é por aí que o seu Real é bem mais competente e criativo do que o Real de Mourinho. Voltemos alguns anos atrás no tempo, lembremo-nos de que foi ele quem "inventou" um meio-campo inteiro para que um jogador que nunca sequer tinha jogado como médio-defensivo se pudesse tornar o melhor dos últimos quinze anos nessa posição e teremos a melhor descrição possível de Carlo Ancelotti.

5. O novo Barcelona começou muito bem. Luis Enrique conseguiu que a equipa jogasse com o bloco tão subido quanto na era de Guardiola, com os sectores muito juntos e a pressionar muito alto. Ao mesmo tempo, ia apostando em jovens jogadores de grande talento, como Munir, usava aos três e aos quatro médios criativos, e conseguia dinâmicas inacreditáveis. Tudo isso se foi, pouco a pouco, dissipando. Às vezes fala-se da coragem de um treinador sem se saber muito bem do que se fala. Para mim, coragem é manter as ideias quando as coisas não correm bem. E o que Luis Enrique fez, a partir de dada altura, foi mostrar que não a tem. Primeiro, foi Piqué, de longe o melhor central do plantel (seguido de Bartra) a ser encostado. Luis Enrique prefere Mascherano e Mathieu porque são mais compenetrados, metem mais o pé, esfolam-se mais, etc.. Depois, foi a derrota diante do Real Madrid. O Barça ainda não tinha sofrido golos no campeonato, jogava bem e fazia coisas que mais nenhuma equipa (salvo o Bayern de Guardiola) faz. Depois da derrota com o rival da capital, o Barça é uma equipa mais banal do que o Barça de Tata Martino. Já não joga com a defesa subida, já não aproxima os sectores, já não pressiona alto, e já nem sequer é capaz de fazer um jogo de posse como antes. Entretanto, desde que Luis Suarez passou a poder jogar, Pedro Rodriguez nunca mais foi titular e Munir raramente foi chamado. Mais do que nunca, o Barça é uma equipa de avançados, e o seu treinador espera que Neymar, Messi e Suarez, para os quais os outros oito jogam, resolvam individualmente o que o colectivo deixou de querer resolver.

6. Paco Jémez foi um dos nomes mais falados para substituir Tata Martino. A direcção do Barça acabou por escolher mal, e Paco Jémez manteve-se aos comandos do Rayo Vallecano. Esta entrevista devia ser lida por toda a gente, mas principalmente por Luis Enrique, que é quem tem a responsabilidade, pela herança que tem, pela tradição do clube e pelas características dos jogadores que possui, de fazer o que nela é ensinado. Para Jémez, ter a bola a todo o custo, arriscando se for preciso arriscar, é o que mais importa, e metê-la na frente é sempre pior do que procurar alguém perto com critério. Além disso, é o adversário que tem de se preocupar com a sua equipa, não a sua equipa com o adversário, e a defesa defende os espaços, não os adversários. Por outro lado, quando um lateral sobe, deve estar preocupado com tudo menos com o facto de ter de vir defender a seguir: a equipa encarregar-se-á de compensar essa subida colectivamente. Para Paco Jémez, é falso que não se possa pressionar durante 90 minutos essencialmente porque pressionar, em seu entender, é um esforço colectivo que depende mais de ajudas, coberturas e posicionamentos relativos do que com esforço muscular, agressividade perante o portador da bola e perseguições individuais. Empatar, acrescenta ainda, é o pior resultado que pode obter: prefere perder, porque, evidentemente, pode perder dois jogos em cada três e fazer os mesmos pontos que faz com três empates. Há pouca gente que pensa assim, e há pouca gente que não vai achar em quase tudo o que Paco Jémez diz um certo atrevimento. E, no entanto, diz mais coisas acertadas em meia-dúzia de respostas do que se diz em dez anos de cursos de formação de treinadores.

7. Nuno Espírito Santo começou a sua aventura em Valência e tem sido bastante elogiado. Evidentemente, é elogiado porque tem tido bons resultados. O futebol do Valência baseia-se, porém, no erro do adversário e no contra-golpe. Tudo o que Nuno pretende é que a equipa chegue rapidamente à baliza adversária, assim que rouba a bola. Defensivamente, os comportamentos da equipa nem são maus, parecendo saber exactamente o que fazer nos momentos de pressing. Mas com bola exigia-se muito mais. E exigia-se sobretudo menos pressa. O Sevilha, o Villareal e o Rayo Vallecano, para dar exemplos de equipas com orçamentos inferiores ou muito inferiores, jogam muito mais à bola do que o Valência, e quando as coisas começarem a correr menos bem e os resultados começarem a ser menos lisonjeiros, talvez caia em desgraça com a mesma velocidade com que caiu em graça.

8. Em Inglaterra, o campeão Manchester City cometeu, a meu ver, o maior pecado que um campeão pode cometer: não ter mudado nada para a nova época. Os campeões precisam de estímulos novos para continuarem a querer ser os melhores, e uma boa maneira de criá-los seria modificar qualquer coisa, sobretudo na forma de atacar da equipa. Sem grandes reforços e sem grandes mexidas na maneira da equipa jogar, o City perderá a pouco e pouco a capacidade de continuar no topo em Inglaterra.

9. O Arsenal de Wenger continua incapaz de ser uma equipa competitiva durante toda a época. Embora o investimento comece a aproximar-se do investimento feito por alguns rivais, e embora consiga finalmente preservar os melhores jogadores de ano para ano, mantêm-se os principais problemas na equipa: as competências defensivas e as lesões. É pena, porque a equipa consegue fazer coisas que a esmagadora maioria das equipas não consegue. E é pena porque Wenger é dos treinadores mais interessantes, do ponto de vista ofensivo. Gosto do estilo, mas tenho de reconhecer que, se não caprichar mais, sobretudo na forma como a equipa defende, o estilo de Wenger não é suficiente.

10. O Chelsea de Mourinho tem o melhor plantel, de muito longe, da Premier League. E mesmo com um meio-campo composto por Matic, Fabregas e Óscar, o futebol praticado é, na maioria das vezes, muito pobre. Defensivamente, a equipa não podia ser mais competente, mas continua a preferir entregar a decisão dos jogos às iniciativas individuais e ao aproveitamento dos detalhes do que às qualidades colectivas. Ainda assim, é capaz de chegar para ser campeão. Em Espanha, em Itália, em França e na Alemanha, Mourinho dificilmente seria campeão a jogar desta maneira. Mas em Inglaterra não há uma equipa capaz de ser regular desde que Ferguson se reformou, e isso é tudo o que importa. O seu Chelsea é competente defensivamente, e isso talvez seja suficiente.

11. Entretanto, Mourinho não perde uma oportunidade para aludir a Guardiola. Quando lhe perguntaram se podia ganhar quatro competições esta época, disse que não porque, ao contrário de outros campeonatos, o campeonato inglês não tem pausa de Inverno e até se joga no Natal. Já aqui tinha sugerido que a carreira de Mourinho pode ser descrita, a partir de certo momento, como uma tentativa de resposta a uma certa obsessão. Agora parece que encontrou outra.

12. Depois de uma época quase brilhante, o Liverpool de Brendan Rodgers está a fazer uma campanha sofrível. A saída de Suarez e a lesão de Sturridge fazem com que o ataque da formação inglesa seja muito diferente do que foi a época passada, e essa pode ser uma explicação para o sucedido, até porque não há muitas mais diferenças. Gosto de pensar, contudo, que uma equipa em que Mario Balotelli é titular em praticamente todos os jogos e em que Lazar Markovic mal tem oportunidades para jogar é uma equipa que não merece muito mais do que a modesta posição que ocupa. Pode-se tentar explicar o insucesso do Liverpool de muitas maneiras, mas referir um treinador que avalia tão mal a qualidade individual dos atletas que tem à sua disposição é capaz de ser suficiente.

13. Gostei muito do trabalho de Pochettino no Espanyol e, do que vi em Inglaterra, só posso dizer bem. A aventura com o Tottenham não tem sido tão feliz quanto isso, ainda que a equipa mantenha as aspirações intactas (está a cinco pontos do acesso à Liga dos Campeões) e há muita gente que tem criticado o seu trabalho. A primeira coisa que gostava de dizer é que Pochettino herdou uma equipa absurda, quase toda formatada pela ideia absurda de jogo que André Villas-Boas tentou implementar. A qualidade individual do Tottenham, ao contrário do que se possa pensar, é muito má, quando se pensa que o clube tem aspirações europeias: Lloris, Verthongen e Lamela são talvez os únicos que podiam jogar num clube maior. Daí que exigir a Pochettino outra coisa que não ficar entre os dez primeiros me pareça um exagero. Ainda assim, não se vê o técnico argentino a jogar para os pontos. Pelo contrário, é das poucas equipas da Premier League que tenta fazer coisas diferentes, que tenta jogar pelo meio, que tenta invadir espaços entre linhas, que joga com os apoios próximos. As derrotas não têm ajudado e vê-se que muitos dos jogadores não gostam de ter de pensar tanto e preferiam um futebol mais à inglesa. Há uns anos, Juande Ramos tentou fazer coisas parecidas e os jogadores do Tottenham, na altura, fizeram-lhe a cama. Lembro-me de ter dito que, embora tivesse regressado às vitórias com Harry Redknapp, o Tottenham perdera nessa altura uma boa oportunidade de se tornar um clube grande em Inglaterra. Não me enganei, ainda que os quartos e quintos lugares de Redknapp tenham dado alegrias a muita gente. Com Pochettino, o Tottenham tinha finalmente a oportunidade de ser, a médio prazo, uma equipa muito forte em Inglaterra. É verdade que os jogadores não são os melhores para isso, mas, para já, era pelo menos importante que esses mesmos jogadores não preferissem ser jogadores de equipa pequena. Infelizmente, é isso que me parece que querem ser.

14. Tim Sherwood, antigo treinador do Tottenham, percebe tanto de futebol como um lagarto ao sol percebe de física quântica. Na sequência da recente derrota do Tottenham com o Chelsea, sugeriu que o belga Verthongen é "muito mau a defender". Para Sherwood, defender é aquilo a que, nas distritas e na Premier League, vulgarmente se chama ter caparro. Verthongen, realmente, não tem caparro. Ou não faz grande uso dele. Isso não significa que não saiba defender. É com preconceitos deste género, preconceitos de que o futebol está completamente cheio, que continuamos a ter de lidar. Esta gente ganha milhões e continua a pensar como o velho que vai à bola ao Domingo a dizer que o futebol era bom era no tempo dos cinco violinos.

15. Na Alemanha, o Bayern vai chegar de novo à viragem do ano com o campeonato praticamente no bolso. É verdade que a resistência interna não é muita, e que o Dortmund, ainda por cima, tratou de facilitar a vida aos bávaros, mas não deixa de ser uma proeza. Quanto ao futebol da equipa, vai crescendo aos poucos e, mesmo sem alguns dos melhores intérpretes, Guardiola tem os seus pupilos cada vez mais próximos do que pretende. Além do 433 da época passada, a equipa joga agora também em 343 e em 352 com uma facilidade impressionante. A linha defensiva está sempre muito alta, o que é absolutamente decisivo para quem queira jogar como Guardiola joga, e os sectores sempre muito juntos, pelo que é fácil depois à equipa adaptar-se a um posicionamento diferente. Mais significativo ainda é perceber que o 343, por exemplo, não serve tanto para abrir a frente de ataque, pois os extremos são essencialmente jogadores para jogar por dentro e vir solicitar o passe a zonas entre a linha defensiva e a linha de meio-campo, quanto serve para ter mais gente no meio. A diferença de Guardiola para os restantes treinadores de futebol é tanta que fazer com que as pessoas a percebam é muito difícil.

16. Por cá, nos últimos dias, o Benfica recebeu o Belenenses, que jogou sem Miguel Rosa e sem Deyverson, possivelmente os dois jogadores mais influentes da equipa esta época. Se calhar é patetice minha, mas isto é capaz de ser um caso de polícia. Miguel Rosa desvinculou-se do Benfica e, mesmo assim, continua a ver a sua carreira comprometida por quem quer que no Benfica tenha algum poder. Já o ano passado tinha sido assim, e voltou a sê-lo este ano. E a única coisa que se faz é assobiar para o lado. Há muita coisa que vai mal no futebol. Há pouca coisa tão abjecta como isto.

17. Por falar em mafiosos, um dos sites portugueses com maior afluência, o TV Golo, foi há tempos bloqueado por todas as operadoras, segundo consta, na sequência de uma ordem judicial desencadeada por uma queixa da Sporttv. O site em questão disponibilizava links para videos de golos e apanhados dos melhores lances de jogos de muitas ligas. Não sei muito bem o que leva uma empresa como a Sporttv a sentir-se lesada por um site deste género (ainda por cima, tanto quanto pude perceber, o site inglês okgoals.com disponibiliza boa parte do que era disponibilizado pelo tvgolo.com), da mesma maneira que não consigo compreender a maior parte das razões contra a livre divulgação de conteúdos na internet, em geral. De qualquer modo, é no mínimo irónico que esta acção moralizadora dos costumes dos utilizadores da internet tenha vindo precisamente de uma empresa que, pelo menos até há bem pouco tempo, detinha o monopólio do negócio do futebol em Portugal e que o vendia como queria e pelos preços que queria. Haja escrúpulos...

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Filhos e Enteados

Uma das coisas que mais confusão me faz, no comportamento das pessoas, é a adesão irreflectida às convenções. O fenómeno faz-me confusão, apesar de conseguir compreendê-lo. Consigo compreender que a educação que receberam não as preparou para exercerem o espírito crítico. Como aprenderam quase tudo por estipulação (por exemplo, disseram-lhes que a soma do quadrado dos catetos era igual ao quadrado da hipotenusa, decoraram-no e tomaram-no por verdade), aprenderam também que todas as coisas se sabem por estipulação. Assim convictos, passam o resto da vida a receber informações alheias e a transformá-las em certezas. E aquilo que sabem, ou julgam saber, não é senão o que os outros lhes dizem. Quando desconfiam dessas informações, cruzam-nas com outras opiniões e, por um critério democrático, aceitam-nas como verdades quando chegam à conclusão de que é uma opinião maioritária. Pessoalmente, considero que quem sabe tudo por estipulação e sufrágio, que é o caso das pessoas que estou a caricaturar acima e que corresponde, em larga medida, à esmagadora maioria das pessoas, não sabe nada. Assim que se lhes diz uma coisa, e que se lhes mostra que até há muita gente que considera que essa coisa é verdade, essas pessoas decidem aderir à mesma opinião. A tendência gregária recomenda-lhes que é melhor ficar do lado das maiorias e, como não sabem nada, ficam sem razão alguma para desconfiar daquilo que lhes está a ser dito. Este género particular de estupidez em massa é tão característica em futebol como noutra actividade qualquer. E é ainda característico - creio - de sociedades democráticas, nas quais a opinião de um bêbedo num café vale tanto como a opinião de qualquer outra pessoa, seja a respeito de que assunto for. Este tique democrático absurdo de acreditar no que é convencional é flagrante - introduzindo agora o assunto sobre que quero falar - na opinião que começa a fixar-se, entre benfiquistas e não só, acerca das qualidades de Jonas. Ou melhor, a distinção entre a opinião relativamente impoluta que se começa a formar acerca de Jonas e a opinião que se foi formando ao longo dos anos acerca de um jogador que me parece incrivelmente parecido com Jonas é tão significativa que torna flagrante o tique a que me estou a referir. 

Ao contrário de muita gente, já conhecia Jonas há alguns anos. Não acompanhei o seu percurso no Brasil, mas habituei-me a vê-lo no Valência, e tenho uma opinião bastante informada acerca das suas competências. Não me surpreende, por isso, o entusiasmo que essas competências, sobretudo a sua inteligência, a finura com que trata a bola, a capacidade técnica e as boas decisões, têm gerado, ainda que me pareça que, sem os golos que tem marcado, a reacção das pessoas não seria igual. E também não me surpreende, para dizer a verdade, que as pessoas estejam a reagir com entusiasmo a essas competências quando, em relação a outros jogadores em que elas se verificam, ou ficam indiferentes ou reagem com desdém. Para dar um exemplo de um jogador que, não sendo aquele com quem quero comparar Jonas, tem um perfil muito semelhante ao brasileiro do Benfica, não encontro muita gente entusiasmada com o futebol de Freddy Montero, possivelmente o melhor avançado a jogar em Portugal. Montero gerou entusiasmo nos primeiros meses, é verdade, mas só porque andava a marcar golos. Assim que os seus números diminuíram, as pessoas foram deixando de apreciá-lo. Aquilo que oferece ao futebol do Sporting é inestimável, mas aos poucos o argelino Slimani, que no princípio da época transacta era considerado um pinheiro, passou a reunir mais admiração do que o colombiano. Slimani é um finalizador razoável. Tirando a capacidade de finalização, procura não complicar muito as suas acções, mas é um avançado banalíssimo. Montero é tudo menos banal. Quase tudo o que faz é muito bem feito, tecnicamente é extraordinário, sabe servir de apoio frontal como ninguém, percebe exactamente qual a melhor solução a dar aos colegas sem bola, sabe jogar entre linhas, etc.. Que opinião é que as pessoas têm dele? Que tem pouca confiança, que é razoável a tratar a bola, mas que faz poucos golos. O número de golos, esse critério maravilhoso para aferir as qualidades de um avançado, é tudo aquilo de que as pessoas precisam para refutar as opiniões dos bêbedos do café a que costumam ir. Realmente, é um critério irrefutável entre bêbedos. Entre pessoas com o domínio das suas competências racionais, no entanto, não é nada. O número de golos não diz nada acerca da qualidade de um avançado e não diz nada acerca do que esse avançado faz pela equipa em que joga. Nada! O Sporting, de resto, teve na sua História recente uma relação de 8 ou 9 anos com um avançado que prejudicava inacreditavelmente a equipa, mas que, como marcava muitos golos, era muito acarinhado. Nessa altura, defendi muitas coisas polémicas acerca do futuro próximo do Sporting, não necessariamente acerca dos efeitos que esse avançado teria nesse futuro, mas acerca dos efeitos que a opinião acerca desse avançado produziria no futuro. Defendi que, com Liedson, o Sporting jamais seria campeão, mas defendi também que o Sporting, como clube, seria mais pequeno nos anos seguintes; defendi que, com Liedson, havia uma série de jogadores que nunca poderiam atingir patamares superiores, mas defendi também que o Sporting, pela admiração que tinha por aquele jogador, iria ter problemas para competir com os seus principais rivais nos anos vindouros. O Sporting teve, entretanto, outros problemas. Nenhum deles é mais difícil de resolver do que o comprazimento na mediocridade de um jogador como Liedson. E é por isso que a equipa de futebol do Sporting é cada vez mais uma equipa de clube pequeno. E é pena, porque o Sporting é um clube grande.

Voltando ao assunto "Jonas", poderia falar ainda de Óscar Cardozo. Ao contrário de Montero, que ainda só está em Portugal há um ano e, portanto, ainda não deu tempo para que se gerassem opiniões firmes acerca das suas qualidades, Cardozo esteve muito tempo em Portugal. Infelizmente para este argumento, Cardozo foi marcando muitos golos e, como tal, houve muita gente que foi resistindo a dar razão àqueles que achavam que Cardozo era lento, pouco ágil, pouco agressivo, pouco intenso, preguiçoso e coisas do género. Tenho a certeza, contudo, que se Cardozo tivesse o azar de permanecer mais um ou dois anos em Portugal sem marcar muitos golos, como na última época, depressa a opinião pública se tornaria assustadoramente negativa. E, no entanto, Cardozo é um avançado interessantíssimo, mesmo sem marcar o número de golos a que habitou a massa adepta do Benfica. É-o porque, apesar da sua envergadura, apesar da pouca agilidade, apesar das dificuldades motoras, é um jogador inteligente, que toma boas decisões, que sabe oferecer apoios verticais e jogar de costas para a baliza, e que tem um excelente sentido posicional. Isto é o mais importante, do meu ponto de vista, num avançado de uma equipa que passa a maior parte do tempo em organização ofensiva. E é isto, fundamentalmente, que Jonas tem, que faz dele o avançado que é, e que causa o entusiasmo que tem causado. É bastante diferente de Cardozo em muitas coisas, mas é um jogador que, em organização ofensiva, faz bem o que o paraguaio fazia bem. Pode ser mais ágil, mais móvel, tecnicamente mais evoluído, ser mais rápido a decidir, mas o seu perfil de decisão é semelhante. Cardozo compensava aquilo em que era menos bom com outras características (a facilidade de remate e a capacidade para proteger a bola, por exemplo), mas tinha um perfil de decisão parecido. É isto que é importante perceber.

Ora bem, é sobretudo pelo perfil de decisão, mas também por quase tudo o resto, que acho que Jonas é parecido... com Hélder Postiga. Quem segue este blogue, sabe não só o que acho acerca de Postiga como terá decerto adivinhado quem era o avançado a quem queria comparar Jonas. Quem não o segue, como é o caso dos imbecis que resolveram adoptar o tique democrático absurdo de que me queixo acima quando comparei os dois jogadores na caixa de comentários deste texto no Lateral Esquerdo, esta comparação talvez faça rir. Sobre a reacção da risada, disse o que tinha a dizer no primeiro parágrafo deste texto: quem ri assim teve uma educação fraca, não sabe pensar, adere a tudo o que as maiorias pensam e gosta é de conversar com bêbedos. Sobre a comparação propriamente dita, justifico-a como justifiquei as comparações anteriores. Postiga é um avançado inteligentíssimo, bom tecnicamente, que resolve situações complicadas tendo pouco espaço e pouco tempo, que decide invariavelmente bem, que não é egoísta, que sabe jogar entre linhas e sabe oferecer apoios verticais aos médios; é alguém com quem é muito fácil combinar, seja com tabelas, seja com triangulações, seja simplesmente com arrastamentos posicionais; é um avançado que contribui, em todas as fases do ataque, de alguma maneira, que percebe exactamente as necessidades da equipa a cada momento. Em que é que isto é diferente daquilo que Jonas tem mostrado? Rigorosamente nada. A não ser que tudo o que se anda a dizer de Jonas se ande a dizer só porque, além disso, tem marcado golos. Devo dizer que não tenho grandes dúvidas de que assim seja. Criou-se a ideia de que Postiga é perdulário (que é uma ideia absolutamente falsa!), e acha-se, portanto, que Jonas não é. Se é essa a diferença, e se é por isso que, consciente ou inconscientemente, esta comparação melindra tanto as pessoas, aquilo que posso recomendar é paciência. É que os golos de Jonas não vão durar para sempre. Ele não será pior jogador quando deixar de marcar, mas nessa altura a opinião das pessoas modificar-se-á. Nessa altura, garanto àqueles que têm opiniões e que pensam que as suas opiniões, por serem idênticas à opinião maioritária, são boas, que Jonas se parecerá um bocadinho mais com Postiga. É pouco provável que venha a criar uma opinião negativa tão consolidada como a opinião que se tem acerca de Postiga, até porque uma opinião assim requer tempo de consolidação, mas a opinião será diferente da que se tem agora. E quem tiver essa opinião nem sequer perceberá que antes tivera uma opinião diferente, nem sequer perceberá que a sua opinião mudou porque as pessoas que estão à sua volta mudaram de opinião, nem sequer perceberá que, na verdade, a opinião que toma por sua não é propriamente sua, mas da massa informe e estúpida a que inconscientemente pertence. E rir-se-á quando alguém comparar um avançado recém-chegado que julga ser extraordinário a um avançado sobre o qual tem uma opinião que não é senão a opinião imbecil dos vizinhos e dos bêbedos que conhece.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Velhos são os Trapos

Foi noticiado, no defeso, que Xavi Hernandez abandonaria o clube de sempre. O motivo era o mais trivial de todos, o de que a idade avançava e as qualidades de Xavi já não eram as de outros tempos. A sustentar esta tese estavam, como sempre, os números. A época anterior, não obstante a titularidade indiscutível, fora surpreendentemente fraca, quer em golos, quer em assistências. Como sabe quem lê este blogue, creio que os números são o pior dos argumentos, em futebol. E podem mesmo ser falaciosos, como me parece ser o caso. O Barcelona de Tata Martino, sobretudo o da segunda metade da época, era uma equipa pouco dinâmica, pouco capaz de envolver os médios em acções ofensivas. É natural que Xavi, um jogador cujos números sempre dependeram do facto de o colectivo jogar de uma determinada maneira, se ressentisse, nesse aspecto. Pessoalmente, acho que o futebol do médio espanhol ainda não começou a decair, e que Xavi ainda é capaz de tudo aquilo que o distinguiu. As suas capacidades físicas podem já não ser as que foram (o que não é sequer certo), mas Xavi nunca se distinguiu por elas. Sempre foi um jogador de poucos rasgos, de poucas mudanças de velocidade, um jogador de regularidade, que faz das decisões a sua principal arma. E isso - perdoem-me os que acham que depois dos 30 anos um jogador já não é o que era - é coisa que Xavi ainda não perdeu. Aos 34 anos, continua ser o mesmo jogador cerebral que era, o mesmo jogador capaz de gerir os ritmos da equipa, capaz de jogar por fora e por dentro do bloco adversário, capaz de perceber, a cada momento, o que é melhor para a sua equipa. Há jogadores que se destacam por qualidades atléticas que, com 34 anos, dificilmente poderão ser o que eram aos 30. Com Xavi não é assim. Com Xavi - diria mesmo - ter 30 anos ou ter 38 é mais ou menos o mesmo. E desconfio que só deixa de jogar ou por preconceito do seu treinador ou quando decidir que é tempo de parar.


Contra o Eibar, na jornada passada, foi assim. Aquele lance em que tira um adversário do caminho e depois trava, ajeitando de calcanhar, com dois toques, tirando mais um adversário da frente, foi já perto do final do jogo. Alguém que, com 34 anos, faz 90 minutos e ainda tem a frescura, física e mental, para fazer uma coisa daquelas é alguém que não está acabado, como dizem. Há um preconceito muito comum no futebol moderno que consiste em presumir que um jogador que já não tem as pernas que tinha tem de dar lugar a quem as tenha. O preconceito está em considerar o futebol um jogo em que "ter pernas" é o principal requisito de quem o joga. Não só isso é falso como há jogadores que nunca se caracterizaram por "ter pernas". Há uns anos, Allegri achou que Pirlo estava velho. Dispensou-o, e ele foi ser campeão pela Juventus. Com Xavi, é mais ou menos o mesmo. Associou-se a época menos feliz do Barcelona, no ano transacto, à idade de Xavi, e fez-se crer que o maestro do meio-campo catalão tinha de dar lugar a outros. É sempre mais fácil achar que uma equipa precisa de mudar de intérpretes do que achar que precisa de mudar de interpretação. Com Luís Enrique, Xavi parece ter perdido o estatuto de titular indiscutível. Mas, no Barcelona de Luis Enrique, cuja principal virtude, em relação ao Barça de Tata Martino, é ser capaz de pressionar mais alto, e com o bloco bem mais junto, Xavi volta a ter o protagonismo que tinha antigamente. Volta a ter muita bola, em zonas avançadas do terreno, com companheiros perto de si, e volta a poder fazer o que melhor sabe. Quem vê Xavi a jogar hoje, não consegue ver grandes diferenças para o que era Xavi há 5 ou 6 anos. A idade está lá, e sempre que o Barcelona não for a equipa de posse que foi com Guardiola, uma equipa paciente, sem pressas, que joga a maior parte do tempo no meio-campo do adversário, que pressiona alto, começando as suas jogadas em terrenos muito avançados, Xavi terá as dificuldades que sempre teve. Mas se o colectivo lhe permitir potenciar as suas melhores qualidades e o proteger das debilidades que sempre teve, será o mesmo Xavi que era. Quem joga, numa equipa desse tipo, é o cérebro. E um cérebro de 34 anos está tudo menos acabado. 

terça-feira, 16 de setembro de 2014

O professor Manuel Sérgio

O professor Manuel Sérgio, que de há uns tempos para cá ganhou a fama de saber alguma coisa de futebol, escreve com assiduidade num jornal desportivo. Além da tendência para gostar um pouco de tudo, como se nada fosse suficientemente mau para merecer a sua censura, tendência da qual Luís Freitas Lobo é o principal cultor, o professor Manuel Sérgio gosta de defender que a teoria e a prática andam de mãos dadas. Apesar do truísmo, o professor repete a ideia em todos os seus artigos, como se estivesse a dizer alguma coisa que a maioria das pessoas não percebesse. A ideia, em si, não só não é extraordinária, como é absolutamente vaga. O professor Manuel Sérgio acha que não, acha que ela contém os mistérios do universo, e não é capaz de aceitar a possibilidade de haver um mau treinador que alie a teoria à prática. Do seu ponto de vista, maus treinadores são aqueles que só têm prática, ou aqueles que só têm teoria. Os que aliam a teoria à prática são necessariamente bons. José Mota, cuja teoria podia ser resumida através da fórmula "Futebol = Luta de Galos", costuma saber passar dessa teoria à prática, pondo os seus atletas a jogar qualquer coisa desse género. De acordo com o argumento do professor Manuel Sérgio, isto é um bom treinador. De acordo com o argumento que reforçarei de seguida, o professor Manuel Sérgio é um tontinho.

A Academia, em termos gerais, tem o hábito de criar este tipo de tontos. São pessoas que, por se terem destacado dentro da Academia, acham que ela tem valor por si. E tudo aquilo que dizem é influenciado pela crença de que a formação que têm lhes dá uma determinada autoridade. Para dar um exemplo, o professor Manuel Sérgio costuma inundar os seus textos com citações de pensadores famosos, acreditando que coisas ditas por pessoas que toda a gente conhece, mesmo que fora de contexto, ajudam a enobrecer o que diz e dão força às teorias que sustenta. Este tipo de vício, o de achar que uma frase de Platão ou Nietzsche é lei, é aquilo que estou a tentar dizer que abunda em muitos académicos. Habituaram-se a ouvir pessoas a defender teorias com base no que os antepassados mais célebres diziam, um hábito, aliás, de outro regime, e acham agora que defender ideias é uma espécie de concurso para ver quem consegue citar mais antepassados. A Academia é muito isto. E o professor Manuel Sérgio, que desde que começou a escrever sempre lembrou que era académico, e que isso o distinguia de alguma maneira, costuma defender as suas ideias assim. Argumentar, para ele, é atirar com tralha antiga aos outros. Influenciado por aquilo que antigamente se achava ser um argumento, e que de facto é um argumento em regimes totalitários, o professor Manuel Sérgio chegou aos jornais desportivos e à opinião pública de pança cheia, como se a sua sabedoria acerca do jogo se justificasse por ser um velho jarreta, por ser académico e por conhecer algumas frases de gente que acha que é importante. 

No seu artigo mais recente, insurge-se contra Jorge Valdano, ainda que conte uma história patusca acerca do dia em que o conheceu, e da elegância do argentino, que muito respeita, e tal e tal. A razão pela qual se insurge contra Valdano é uma frase proferida por este num livro: "Nunca ouvi Mourinho dizer uma frase sobre futebol, digna de ser recordada". Mourinho é o campeão pelo qual a donzela Manuel Sérgio torce porque, evidentemente, o fenómeno Mourinho, como a muitas outras pessoas medíocres (o conselheiro Acácio, por exemplo, que agora comenta assiduamente na SportTV), tornou-o famoso. O sucesso de Mourinho foi tal que, para o explicar, deu-se voz a algumas pessoas que, até aí, ninguém conhecia. Desde treinadores a professores, todos ficaram a ganhar com isso. E o professor Manuel Sérgio foi um deles. Foi, digamos assim, o responsável por explicar o lado filosófico do sucesso de Mourinho. Como Mourinho o trouxe para a ribalta, o professor Manuel Sérgio decidiu que devia intervir a favor do seu protegido. E desatou a dizer disparates, uns na forma de argumentos à pedrada, outros na forma de citações sem nexo, a maioria deles revelando a senilidade que o define. Eis um exemplo:

"Há muitos anos já, o José Mourinho me escutou: "Quem só teoriza não sabe, quem só pratica repete"

Não obstante a brasileirismo do português, o professor Manuel Sérgio é suficientemente vaidoso para achar que ensinou o que de mais importante Mourinho aprendeu. Decidiu proteger Mourinho, portanto, porque acha que Mourinho pôs em prática os seus ensinamentos. Decidiu proteger Mourinho porque acha que o futebol das equipas de Mourinho foi, de alguma maneira, influenciado por ele. Eis outro exemplo dos disparates do professor Manuel Sérgio:

"No conhecimento científico, não há teoria sem prática, nem prática sem teoria, se bem que (e volto a palavras minhas) a prática seja mais importante do que a teoria e a teoria só tenha valor, se for a teoria de uma determinada prática."

Ao professor Manuel Sérgio, que gosta tanto de citar autores, bastava que se lhe citasse Aristóteles para que percebesse que estas três linhas não têm pés nem cabeça. Isto para não falar da implicação maior destas afirmações, a de que toda a gente devia ir para cursos profissionais. Para o distinto professor, tudo é prática. E a única teoria que tem valor é a teoria que se debruça sobre uma prática. Na insigne indústria do sapato, por exemplo, só há espaço para sapateiros e para teorizadores do sapato. E o modelo de sociedade que daqui decorre é um em que cada indivíduo ou vai para sapateiro (ou para outra profissão prática qualquer) ou para teorizador de sapatos (ou de outra arte qualquer). É mais ou menos o modelo proposto por Platão, com a importante diferença de só conceber a classe dos artesãos. Isto faria do professor Manuel Sérgio um pedagogo de tontos, não fosse o azar de fazê-lo um pedagogo tonto, como se vê no exemplo seguinte:

"se associarmos, no treinador de futebol Jorge Valdano, a teoria à prática, podemos aplaudir a teoria, até o seu humanismo, mas a prática (como treinador de futebol, repito-me) rasa o sofrível"

Jorge Valdano não teve grande sucesso como treinador, logo tudo o que diz é inconsequente. Para o professor Manuel Sérgio, o que autoriza uma pessoa a falar e a ter razão não são as ideias e os argumentos; são os resultados práticos. Seja o que for que Valdano diga, é necessariamente falso porque ainda não teve sucesso com essas ideias. Não sei o que o professor Manuel Sérgio acha que sabe, mas toda a História da Ciência consiste em pessoas que formularam teorias, que foram ridicularizadas enquanto essas teorias não foram aceites e que passaram à posteridade quando se percebeu que tinham razão. Toda a História da Ciência é sobre teorias que, depois de corroboradas, transformaram a prática para sempre. Valdano pode nem nunca ter sucesso como treinador, mas isso só implica que não diga coisas acertadas na cabeça tacanha de quem não sabe nada do que pensa que sabe. Veja-se mais um exemplo:

"Vejamos agora, sem irmos até ao pormenor, o que de mais significativo fez José Mourinho: completou 100 jogos, na Liga dos Campeões; foi campeão em Itália, em Inglaterra, em Portugal e em Espanha; venceu duas vezes a Liga dos Campeões e uma vez a Taça UEFA (hoje, Liga Europa)"

Para o professor Manuel Sérgio, o currículo de Mourinho fala por si. Com um currículo destes, tem necessariamente de ser bom treinador e de ter boas ideias sobre o jogo. Não interessa muito como e com que meios conseguiu o que conseguiu. O que interessa é que teve sucesso. Há cerca de três quartos de século, também houve quem tivesse dominado a Europa quase toda. Por isso, para o professor Manuel Sérgio, a máquina nazi também deve ser elogiada. Não interessa o poderio bélico desigual; só interessa o sucesso das manobras militares. O que Mourinho fez no Porto, e também na sua primeira passagem no Chelsea, é evidentemente invejável. O que fez depois disso é banal. E é-o não porque passou a ter piores resultados (o que aconteceu), mas porque passou a conceber o jogo de maneira diferente, ou seja, porque passou a teorizar de maneira diferente. Passemos para o último exemplo:

"E se consultarmos o livro Mourinho - a descoberta guiada, do prof. Luís Lourenço, aí encontraremos, na força expressiva das palavras, uma admiração incontida dos seus jogadores, pelo treinador e o homem que José Mourinho é".

Não sei se isto é desonestidade intelectual, se infantilidade. Gostava de conhecer um livro sobre uma pessoa que contivesse testemunhos de outras pessoas que dissessem mal dessa pessoa, mas não conheço. O professor Manuel Sérgio, pelos vistos, deve conhecer, ou não acharia que palavras elogiosas de jogadores num livro sobre um treinador pudessem servir de argumento para comprovar a qualidade desse treinador. Enfim... O professor Manuel Sérgio é um tontinho que tem hoje espaço na opinião pública porque teve a sorte de alguém que conhecia ter tido sucesso. Admira Mourinho não porque Mourinho seja um grande treinador, mas porque acha que Mourinho ilustra a única teoria que tem, e que repete ad nausea, uma teoria que, além de vaga, é falaciosa. Além de tonto, é por isso um bocado parasitário. A sua existência, pelo menos a sua existência pública, depende de outros. Não obstante, acha-se um intelectual de primeira água. Muito da sociedade contemporânea se explica pelo tipo de fénomeno que o professor Manuel Sérgio afinal incorpora: uma pessoa que dá ares de saber alguma coisa, mas que não sabe nada, e que de repente chega a milhares de outras. O melhor que podia fazer o professor Manuel Sérgio era, por isso, pedir que o empalhassem.

quinta-feira, 28 de agosto de 2014

Triangulação Perfeita

A jogada é a do segundo golo do Chelsea na primeira jornada da Liga Inglesa, ante o Burnley, e exemplifica, a meu ver, tudo aquilo que um simples gesto técnico é capaz de conseguir. Tudo começa com uma arrancada de Hazard, mas é o que se segue que me parece notável. A bola entra no flanco direito, os jogadores do Burnley posicionam-se à espera do cruzamento (8 ficam atrás da linha da bola), e o que o Chelsea faz é o que deve fazer qualquer equipa que leva a bola para aquela zona do terreno e pretende invadir a área adversária. No momento em que Ivanovic prepara o cruzamento, Fabregas posiciona-se à entrada da área e pede a bola, enquanto Schurrle inicia a marcha, para passar por entre o bloco adversário sem bola. Ivanovic opta então por trazer o lance para o meio, precisamente para onde Fabregas se encontra, e o espanhol parece ter espaço para armar o remate. Mas o movimento de Schurrle, iniciado anteriormente, dá a Fabregas outra solução, a de, fingindo o remate, amortecer para onde o alemão se dirigia. Com dois passes e uma triangulação relativamente simples, o Chelsea ultrapassou um bloco de oito adversários e criou uma situação clara de golo, deixando um jogador sozinho em frente ao guarda-redes.

Evidentemente, a execução técnica perfeita e a capacidade de Fabregas para ler todo o lance em tão pouco tempo e para tomar aquela decisão foram decisivos. Mas colectivamente é isto que uma equipa deve procurar criar. Sem bola, o movimento de Schurrle foi inteligentíssimo. Percebeu que, na posição em que estava, não oferecia nada à equipa e que, enquanto a bola fosse de Ivanovic a Fabregas, a atenção não recairia sobre ele. Aproveitando-se disso, iniciou um movimento pelo qual pudesse oferecer mais tarde, ao futuro portador da bola e não ao actual, uma opção de passe. A desmarcação também é isto, também é antecipar a opção de passe que dará a quem ainda não tem a bola. O que o Chelsea conseguiu, em termos colectivos, foi por isso notável. E o golo foi um dos melhores dos últimos tempos. Soubesse Mourinho replicar coisas destas e o Chelsea seria uma equipa bem mais interessante.

segunda-feira, 4 de agosto de 2014

Futebol e Condições Climatéricas

Ainda sobre a ideia, sustentada em alguns dos últimos textos, de que o clima em que este mundial se jogou prejudicou não só o espectáculo em geral mas também, em particular, as equipas que fazem da organização táctica e da tomada de decisão os seus principais trunfos, expressa o Filipe Vieira de Sá, no seu último texto, uma opinião que, além de me parecer conforme à opinião de muita gente, e por isso interessante de contradizer aqui, implica a crença de que o futebol é uma coisa que, a meu ver, não é ou não devia ser. Embora o Filipe aceite  a ideia de que as condições climatéricas ajudam a explicar o que se passou no mundial, discorda do "pressuposto de que não estavam reunidas as condições para se jogar futebol", pois o futebol, na sua opinião, "é um jogo global, não pertence apenas à meia-estação europeia, e por esse mundo fora há várias equipas que jogam nas condições encontradas em certos estádios deste mundial". A implicação deste argumento não pode ser outra que não a de que os factores externos, na opinião do Filipe, fazem parte do jogo. Fica por saber, porém, se todos os factores externos ou se apenas alguns. Por exemplo, se o futebol é um jogo global e não se deve procurar organizar as principais competições internacionais apenas em sítios onde as condições climatéricas forem parecidas com as que se verificam a maior parte do ano no continente europeu, é aceitável jogar futebol, por exemplo, no Polo Norte?  Poderia ridicularizar esta posição ainda mais, mas parece-me que não valerá a pena. Em vez disso, era importante que as pessoas tentassem responder a algumas questões. Por que será que os campeonatos, na Europa, são organizados para começar quando o Verão já está a terminar e para acabar antes de ele começar? Por que será que param alguns na altura em que o Inverno é mais rigoroso? Não será porque condições extremas de calor e frio prejudicam necessariamente o espectáculo? Por que é que não se joga quando o campo está alagado? Ou por que é que não se joga em pelados? Alguns clubes agradeceriam, certamente. E o nível de competitividade seria, garantidamente, superior.

Parece-me, claro, pelo menos para mim, que há condições mais propícias à prática do futebol do que outras e que a tendência tem sido, ao longo dos anos, a de tentar uniformizar essas condições. O tamanho dos campos, o tamanho do corte da relva, a qualidade dos relvados, as bolas com que se joga, o calendário anual das competições - tudo isto é hoje em dia mais uniforme do que foi no passado. Em benefício do espectáculo e da justiça desportiva, entendeu-se há muito tempo que era importante mitigar a relevância dos factores externos tanto quanto possível. Em nome da diversidade, o Filipe discorda desta ideia. A ele e às muitas pessoas que, como ele, acham que as características do futebol de cada país devem ser preservadas a todo o custo, não interessa nem a qualidade do espectáculo nem essa coisa estranha a que estou a chamar "justiça". Tenho muitas dificuldades em perceber o que é que considera entusiasmante no futebol quem pensa assim. Pessoalmente, tenho pouquíssimo interesse em ver jogos da segunda liga. Da mesma maneira, não encontro quaisquer razões estéticas para apreciar um desenho de uma criança. Se quero ver futebol, tento ver as melhores equipas e os melhores jogadores; se quero ver pintura, vou ao  Prado ou ao Louvre. Achar que é mais importante preservar a diversidade de estilos e de características do que atenuar a injustiça que consiste em jogar futebol quando os factores externos são mais decisivos do que a competência das equipas é não gostar de futebol; é gostar de cultura. Eu acho bonito que se goste de cultura, e também acho bonito que se queira preservá-la. Mas preservem-na em museus, em livros de História, ou na memória colectiva.

Num jogo que consiste essencialmente em pôr frente a frente duas forças, parece-me lógico, além de justo, que os melhores a jogá-lo sejam aqueles que forem capazes de derrotar as forças adversárias unicamente por serem mais fortes do que elas. Parece-me ser o pressuposto, aliás, do próprio conceito de jogo. Num jogo de tabuleiro como o xadrez, por exemplo, os factores externos não têm praticamente peso nenhum. Em xadrez, ganha quem é melhor. Em futebol, não só não é assim como é ingénuo pensar que algum dia possa vir a sê-lo. É um jogo diferente, em que os factores externos (a sorte, o clima, os árbitros, etc.) terão sempre alguma importância. Mas isso não invalida que eles não devam ser reduzidos ao máximo. Claro que devem. Não faz sequer sentido entender o futebol como jogo se não se aceitar isto. Em desportos de pavilhão, por exemplo, o factor externo do clima não tem qualquer importância. Enquanto jogos, o basquetebol, o andebol, o voleibol e outros que tais são sem dúvida desportos mais justos. No ténis, pelo menos em alguns torneios, a simples presença dos primeiros pingos de chuva é suficiente para interromper um desafio. É verdade que essas interrupções têm por principal motivação o espectáculo e a preservação da integridade física dos atletas, mas é fácil de perceber que, por exemplo, jogar à chuva em terra batida não é jogar em terra batida. Da mesma maneira que, estando a chover em Roland Garros, um especialista em terra batida perde a vantagem que tem para um adversário que não o seja, também as equipas de futebol mais competentes perdem a vantagem que têm para as outras, se não estiverem reunidas as condições suficientes para que possam pôr em prática essa competência.

Temperaturas extremas, velocidades do vento muito elevadas, níveis de humidade altos, nevoeiros cerrados, chuvas intensas e níveis de oxigénio reduzido, em altitude, são algumas das condições atmosféricas que condicionam a qualidade dos jogos e diminuem as diferenças entre as boas e as más equipas. Tal como o ciclismo é um desporto de Verão, pelas razões que facilmente se entendem, o futebol é um desporto de Inverno porque o espectáculo é necessariamente melhor no Inverno. Ninguém, estando de perfeita saúde, contesta isto. Condições externas invulgares na Europa não tornam apenas o jogo diverso; tornam-no pior. Tornam-no pior porque, nessas condições, as melhores equipas deixam de ser capazes de fazer uso dos argumentos pelos quais são as melhores equipas. Níveis de humidade muito altos e temperaturas demasiado altas, as principais características que, a meu ver, prejudicaram a qualidade do campeonato do mundo e algumas das melhores equipas que lá estiveram, tendem a provocar um desgaste, a curto, médio e longo prazo, que é incompatível com a melhor prática do jogo. O que é que interessa que essas sejam as condições em que se joga normalmente em muitas partes do globo? Que os factores externos tenham um peso mais relevante em alguns lugares da América do Sul do que têm na maior parte dos países europeus e que, por isso, o futebol que se joga nesses lugares tenha menos qualidade e seja menos justo do que o futebol que se joga na Europa é razão suficiente para afirmar que o futebol em alguns lugares da América do Sul é menos interessante (entendendo que o interesse do jogo depende intrinsecamente da sua qualidade e da justiça a que se presta) do que o futebol que se joga na Europa. É por este motivo, essencialmente, que me parece que as grandes competições deviam evitar ao máximo a sujeição a essas condições. No Brasil, talvez bastasse abdicar de duas ou três das regiões em que se jogou e escolher melhor as horas do dia. Além disso, talvez também não fosse má ideia estender a competição por mais duas semanas, espaçando assim mais os jogos que cada equipa disputa e permitindo-lhes uma melhor recuperação de jogo para jogo.  Se assim tivesse sido, não haveria com certeza tantas surpresas e tantas anormalidades, o que, para muita gente, é um defeito. Mas as poucas que houvesse seriam muito mais motivadas pelo mérito ou pelo demérito das equipas. Quem quer que goste de futebol, e que goste pelas razões certas, tem de preferir um campeonato assim.

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Mannschaft

O mundial terminou e acabou por consagrar uma das poucas equipas que fez alguma coisa que se parecesse com jogar futebol. Confesso que, sendo a Alemanha, para mim, a favorita à vitória depois da fase de grupos, achava que havia muitas possibilidades de isso não acontecer, dada a importância que os factores externos estavam a ter neste torneio. Ajudou, parece-me, o facto de as meias-finais e a final terem sido jogadas a horas decentes, assim como o facto de o desgaste acumulado se ter começado a notar a partir dos quartos-de-final, como previra. Até aos oitavos de final, o clima prejudicou as equipas jogo a jogo, provocando erros de concentração, desorganização e, em suma, favorecendo as equipas que não fazem da organização táctica e das boas decisões colectivas a sua força. A partir dos quartos de final, porém, o clima afectou as equipas de outro modo: a sua acção deixou de ser no próprio jogo (à excepção do Argentina - Bélgica), mas no desgaste acumulado pelas individualidades. Se, até aos oitavos de final, as equipas que, não obstante serem desorganizadas, tinham individualidades capazes de resolver individualmente tinham sido favorecidas pelo clima, a partir dos quartos de final voltaram a ser as equipas com competências colectivas as principais favoritas. Não admira, por isso, que a única dessas equipas que sobrevivera à primeira fase tivesse acabado por ser a lógica vencedora.

Embora não tivesse previsto que a primeira fase do mundial fosse tão mal jogada, tinha previsto que, a partir dos quartos de final, os jogos fossem fracos. Não foram; foram paupérrimos. O melhor de todos acabou por ser mesmo a final, o que é surpreendente, tendo em conta que as finais não costumam ser muito bem jogadas, por variadas razões. Nos quartos de final, o Argentina - Bélgica foi fraquíssimo, o Alemanha - França foi morno, o Holanda - Costa Rica teve momentos de emoção, mas foi muito mal jogado, de parte a parte, e o Brasil - Colômbia foi um jogo de futebol de rua. No Alemanha - Brasil, houve 20 minutos engraçados, mas a exibição patética dos brasileiros tratou de desnivelar de tal modo o jogo que o espectáculo terminou ali. O Argentina - Holanda foi um dos piores jogos da competição, com duas equipas cheias de argumentos, mas sem capacidades colectivas e com todas as individualidades a acusarem o cansaço prolongado. A final, por seu turno, foi um jogo interessante, com uma equipa a assumir a condução da partida e a outra a tentar jogar no erro da primeira, a fazer lembrar alguns dos melhores embates entre escolas de futebol opostas dos últimos anos. Para muita gente, este foi o melhor mundial a que assistiram. Quem pensa assim, na minha opinião, é mais influenciada pelas emoções que os jogos suscitaram do que pela qualidade dos mesmos. De facto, houve muita incerteza, muitas surpresas, muitas ocasiões junto às balizas e muitos golos. Nada disto implica que tenha havido bom futebol. Na minha opinião, não houve. O mundial foi fraco naquilo que mais importaria que não fosse, nas decisões. Tem de ser esse o critério para se avaliar a qualidade de um jogo, não as emoções, as oportunidades de golo ou a incerteza no marcador. Por norma, houve más decisões, muitos erros individuais e colectivos, muitas equipas desorganizadas. No capítulo das decisões, este mundial representou um retrocesso de mais de 20 anos. Felizmente para a modalidade, ganhou uma das poucas equipas que jogaram modernamente. Não fosse a vitória alemã, e 2013/2014 teria sido a época futebolística mais negra de que me lembro.

A vitória alemã representa ainda a vitória de um estilo sobre o estilo contrário. Para muitos, o tiki-taka morreu e as recentes derrotas do Barcelona, bem como a incapacidade do Bayern de Guardiola para vencer o Real Madrid mostraram isso mesmo. Para outros, nos quais me incluo, o tiki-taka não é uma coisa em que só o Barcelona de Guardiola era competente. Pessoalmente, considero que há uma forma melhor de jogar futebol, e essa forma consiste em ter a bola, em preservá-la e em circulá-la com critério, em usá-la passivamente, para descansar e cansar o adversário, mas também em usá-la activamente, para desposicionar os adversários, para conduzir o jogo para onde interessa que seja conduzido, e para manter a própria equipa organizada e preparada para a perda da bola. Esta Alemanha faz isso tudo quase tão bem como o faz a Espanha, e melhor do que qualquer outra selecção alemã do passado. Foi melhorando de ano para ano, com Joachim Löw, nesse capítulo, e apareceu neste mundial a jogar à Guardiola mais do que nunca. Parece-me um exagero pensar que Guardiola foi o cérebro por trás da vitória alemã, mas não é decerto exagerado pensar que foi uma influência decisiva, como aliás já tinha sido uma influência decisiva para os anteriores campeões do mundo. Joachim Löw começou a copiar o modelo espanhol (e o modelo de Guardiola) depois de ter sido eliminado nas meias-finais em 2010. Até aí, jogara quase sempre em 442 clássico. Depois disso, nunca mais o fez. Em 2012, porém, ainda os alemães não eram suficientemente maduros a jogar dessa forma, e a equipa acabou por cair aos pés de uma Itália que fazia esse tipo de jogo simplesmente porque tinha jogadores mais aptos para o fazerem. Aos poucos, no entanto, Joachim Löw convenceu-se de que tinha de ir mais longe para ter sucesso. Ir mais longe implicava imitar tudo, desde o sistema táctico às inovações introduzidas pelo próprio Guardiola. Foi por isso que começou este mundial a jogar no 433 de Guardiola, com Lahm a médio-defensivo, como Guardiola concebera, e com Muller na posição de avançado, como Guardiola concebera. É verdade que não manteve esse ideal até ao fim, mas a sua equipa jogou sempre mais à espanhola do que à alemã, e isso foi decisivo. Löw foi campeão do mundo pelas mesmas razões que Del Bosque o fora há 4 anos, porque foi humilde o suficiente para perceber que Guardiola não é apenas o treinador mais titulado dos últimos anos mas o homem que melhor percebeu o que uma equipa de futebol deve fazer para ter sucesso. Tal como Del Bosque, Löw aproveitou as ideias de Guardiola para melhorar as suas, e isso foi decisivo para esta conquista. A vitória alemã mostra assim várias coisas, mas a mais importante talvez seja a de que é a imitar o estilo de outras equipas, ao contrário do que muitas vezes se pensa, que uma equipa evolui. Imitar os grandes mestres, como em qualquer forma de arte, é a melhor maneira de evoluir.

Melhor Onze:

Guarda-Redes: Neuer
Defesa Direito: Lahm
Defesa Esquerdo: Blind
Defesas Centrais: Thiago Silva e Hummels
Médio Defensivo: Pirlo
Médios Ofensivos: Wijnaldum e Óscar
Extremos: Özil e James Rodriguez
Avançado: Muller

Treinador: Joachim Löw

Suplentes:

Guarda-Redes: Cillessen
Defesa Direito: Zabaleta
Defesa Esquerdo: Verthongen
Defesas Centrais: Varane e Garay
Médio Defensivo: Schweinsteiger
Médios Ofensivos: Kroos e Iniesta
Extremos: Robben e Messi
Avançado: Van Persie

Treinador: Jorge Luís Pinto

sexta-feira, 4 de julho de 2014

O Mundial dos Detalhes e das Individualidades

Há um tipo de estupidez particular, quando se fala de futebol, que consiste em ignorar que este não é um jogo como a maioria dos outros jogos. Ao passo que é difícil dizer, por exemplo em xadrez, que determinado jogador teve sorte em vencer, no futebol nem sempre quem joga melhor é quem vence. Não há, aliás, outro jogo que se compare ao futebol, nesse aspecto, e essa é também uma das razões pelas quais este é um desporto tão popular. O motivo é mais ou menos claro: ao contrário da grande maioria dos outros jogos, é um jogo cujo resultados não são geralmente volumosos. O golo é algo que acontece poucas vezes e, sendo a diferença de golos que determina quem ganha e quem perde, é natural que haja muitos jogos cujo resultado não espelhe o que as equipas fizeram. Uma vez que as equipas ganham ou perdem por causa de um ou dois lances em cada 90 minutos, é possível afirmar que é o jogo em que os detalhes são mais decisivos. Isso fez com que, ao longo dos anos, muitas pessoas acreditassem que eram melhores equipas aquelas que se especializassem melhor nos detalhes. Não acreditando nisso, é verdade que os detalhes têm um peso importante na definição de um jogo e é muitas vezes por eles que se deve explicá-lo. Pessoalmente, considero que é melhor equipa aquela que trabalhar de maneira a depender menos dos detalhes, mas não posso deixar de reconhecer que são eles, muitas vezes, que distinguem os campeões. Em competições a eliminar, então, o peso dos detalhes é ainda mais significativo. E se, a juntar a isto, a qualidade colectiva das equipas de um torneio, por exemplo um campeonato do mundo, for nivelada por baixo, mais decisivos eles são.

O preâmbulo anterior serve para preparar as duas coisas que quero dizer de seguida. A primeira é que é profundamente estúpido todo o comentador de futebol que, qual Freitas Lobo, chega ao fim de uma partida de futebol e tenta justificar o que nela se passou apenas pela qualidade táctica das equipas. Essas pessoas acham que resultados espelham fielmente exibições, e que se ganha porque se fez necessariamente por isso. São estúpidos porque não percebem que o futebol é um jogo de detalhes e que, muitas vezes, são os detalhes que determinam os vencedores. Arranjam explicações para tudo, riscam da memória tudo o que sabiam, e fazem diagnósticos com base num ou noutro lance em 90 minutos. O melhor exemplo foi o que se passou no texto anterior. Ninguém percebeu nada do que aconteceu à Espanha neste mundial, mas todos acharam que foi eliminada porque já não joga como antes e que o futebol que joga actualmente é inferior ao futebol da Holanda e do Chile. Não percebem que o futebol é um jogo de detalhes e não acreditam, como deve acreditar quem tem ideias, que a Espanha actual, sendo ou não tão forte como foi em 2012, por exemplo, ganharia 9 em 10 jogos que fizessem com qualquer um deles. A segunda coisa que pretendo afirmar vai também contra quase tudo o que tenho ouvido dizer sobre este mundial: para mim, está a ser dos piores mundiais dos últimos anos. E a razão tem precisamente a ver com esta questão dos detalhes. Uma série de factores tem contribuído para que as diferenças entre as boas e as más equipas se tenha esbatido, e os vencedores têm-se distinguido dos vencidos, por norma, apenas através de um detalhe ou outro. A maior parte das pessoas não pensará assim, mas um dos melhores critérios para distinguir um bom jogo (e um bom campeonato) de um mau jogo é ele não ter por factor decisivo um detalhe. Nesse sentido, este mundial estará ao nível do de 2002, por exemplo, e será, a par desse, o pior das últimas duas décadas.

Há um ano, antecipei que a qualidade deste mundial estava em risco precisamente pelas condições climatéricas. Achava, porém, que a prova decresceria de qualidade apenas a partir da fase a eliminar, e achava que as condições climatéricas seriam decisivas apenas no desgaste acumulado nos jogadores. Estava redondamente enganado. As condições climatéricas foram decisivas desde o primeiro jogo. A selecção que mais pagou por elas foi a Itália, uma das que melhor futebol apresentou na primeira fase e que, não obstante, foi eliminada. O primeiro jogo mostrou uma Itália competentíssima, mas incapaz de aguentar mais do que 60 minutos, em termos físicos. A última meia-hora do jogo contra a Inglaterra foi sofrível, quer para um, quer para outro conjunto, e no jogo com a Costa Rica a Itália foi incapaz de ter ideias precisamente pelo desgaste dessa primeira partida. Mesmo não voltando a jogar como na primeira partida, a Itália voltou a ser bem superior ao seu adversário no último jogo, sendo eliminada, lá está, por um detalhe. O detalhe do clima, o detalhe do árbitro e o detalhe das bolas paradas atiraram uma das melhores equipas em prova para fora da mesma logo na fase de grupos. Para muitos, a Itália foi-se embora porque não foi tão forte como as equipas que passaram. Para mim, essas pessoas não sabem o que é futebol. Em termos estritamente futebolísticos, a Itália foi a equipa mais forte do grupo. Acontece que, em futebol, às vezes isso não é suficiente. E neste campeonato do mundo jogar bom futebol tem sido das coisas menos importantes para se atingir o sucesso.

Posso juntar ao exemplo da Itália e da Espanha muitos outros. 1) A Alemanha a fraquejar diante do Gana. Um jogo que estava completamente controlado, com a Alemanha a ganhar por 1-0 e com várias oportunidades para dilatar o marcador, transformou-se em poucos minutos numa coisa completamente diferente, com dois golos de seguida dos ganeses, e só não terminou com goleada para os africanos porque não aproveitaram 3 ou 4 lances de forma inexplicável. 2) O apuramento do Uruguai, sem nada fazerem por isso. Depois de uma exibição paupérrima contra a Costa Rica, os pupilos de Tabarez não foram superiores aos ingleses, mas aproveitaram a falha de Gerrard. Também não foram superiores aos italianos, mas beneficiaram da expulsão de Marchisio e do facto de Suarez não ter sido expulso, como beneficiaram de mais um golo decisivo, na sequência de uma bola parada, de Godín. 3) O apuramento da Grécia. Depois de uma copiosa derrota frente à Colômbia, os gregos mantiveram-se à tona da água por empatarem contra o Japão num jogo em que podiam ter perdido por vários golos. Depois, frente à Costa do Marfim, um golo de penalty no último minuto dos descontos (aliás, como o golo que marcaram à Costa Rica e que lhes permitiu adiar a decisão dos oitavos de final para o prolongamento)  ditou a passagem de uma equipa que, futebolisticamente, não é nada. 4) O Irão a bater o pé à Argentina e Messi a resolver. Os argentinos queixaram-se precisamente das condições climatéricas, e o que se viu foi uma equipa cansada, sem capacidade colectiva e individual para penetrar na defesa iraniana. Os iranianos acabaram por ter as melhores oportunidades da segunda parte, mas foi um momento de inspiração individual de Messi que ditou a vitória argentina. 5) A surpresa da Costa Rica. Não querendo tirar mérito a uma equipa que tem mostrado algumas qualidades, os costa-riquenhos só estão onde estão pelos detalhes. Os uruguaios subestimaram-nos, a Itália não se conseguiu mexer, a Inglaterra já estava eliminada, e a lotaria dos penalties contra os gregos puseram-nos nos quartos de final. É evidente que têm três ou quatro bons jogadores, e uma equipa solidária, mas não foi por questões futebolísticas que chegaram até aqui. 6) O apuramento da Suíça. A Suíça apurou-se à frente do Equador porque no jogo inaugural, precisamente contra os sul-americanos, venceu a partida no período de descontos, num lance que começa com uma perdida dos equatorianos na área suíça, que lhes podia ter dado a vitória, e que termina com um contra-ataque suíço que é transformado em golo (e em fora-de-jogo, salvo erro). 7) A bola à barra de Pinilla. No último minuto dos descontos, o Chile podia ter eliminado a equipa anfitriã. Assim, foram para penalties e a sorte sorriu aos brasileiros. 8) A eliminação do México. A Holanda não fez um grande jogo, mas pressionou os mexicanos na última parte do desafio, conseguiu empatar e chegou à vantagem num lance de penalty nos últimos minutos. 9) A eliminação da Nigéria. Os franceses não foram superiores aos nigerianos na maior parte do tempo, e podiam ter sofrido um golo em várias ocasiões. A partir de um lance em que Matuidi devia ter sido expulso e a Nigéria teve de alterar o seu meio-campo, os franceses cresceram, acabando por chegar ao golo, uma vez mais, num lance de bola parada. 10) A eliminação da Argélia. Embora a Alemanha tenha sido muito superior, os argelinos foram corajosos e souberam pôr a nu as debilidades sobretudo do sector defensivo germânico. É verdade que passou a melhor equipa, mas a Argélia, se tivesse tido outra sorte, tinha mandado a Alemanha para casa. É minha convicção de que tal cenário só foi possível porque as equipas mais fortes, nestas condições, ficam mais expostas e vulneráveis aos detalhes, como seja o da vontade com que os argelinos jogaram. 11) A eliminação dos Estados Unidos. A Bélgica foi superior durante 105 minutos. Nesse período, podia ter marcado mais de uma dezena de golos. Mas os Estados Unidos podiam ter vencido o jogo no último minuto do tempo regulamentar e, depois de estarem a perder por 2-0, construíram ocasiões de golo suficientes, em apenas 15 minutos, para virar o resultado. 12) O desfecho dos oitavos de final. Dos oito jogos dos oitavos de final, 5 foram a prolongamento (2 dos quais foram a penalties) e outro ficou resolvido nos últimos minutos. Tal equilíbrio não é acidental. A Argélia, a Suíça e os Estados Unidos, principalmente, só arrastaram o jogo para o prolongamento porque houve condições externas a equilibrar as contendas. Em condições normais, estes jogos seriam decididos nos 90 minutos. 13) A derrocada das equipas europeias. É verdade que, em quantidade, passaram aos oitavos de final tantas equipas europeias como em 2010, mas ficarem pelo caminho as duas equipas que ainda há dois anos se sagraram campeã e vice-campeã da Europa parece-me substancialmente diferente de ficarem pelo caminho a Itália e a França de 2010. Ao mesmo tempo, não é normal que, das 10 equipas do continente americano em prova,  8 tenham passado aos oitavos de final, sendo que também o Equador esteve muito próximo de o conseguir. O mundial, nas condições em que tem sido jogado, é benéfico para as típicas equipas sul-americanas, que se caracterizam por serem aguerridas e muito disponíveis em termos físicos, e ainda por terem várias individualidades com qualidades técnicas que podem decidir individualmente os jogos.

Muitos se têm espantado ainda com as várias exibições espectaculares dos guarda-redes. Na minha opinião, é mais uma evidência de que o mundial não tem sido muito bem jogado. Quando os avançados e os guarda-redes são os principais destaques das equipas, é sinal de que o futebol apresentado, em termos gerais, não tem sido grande coisa. Desde o mundial de 86 no México que as principais estrelas de cada selecção não tinham tanto protagonismo e não eram tão decisivas. Isso deve-se ao facto de, tacticamente, o futebol ter evoluído bastante. Nos últimos trinta anos, assistiu-se a uma evolução táctica que, de algum modo, fez com que os principais jogadores não fossem capazes de brilhar individualmente como até então. Evidentemente, houve quem o conseguisse. Mas neste mundial têm brilhado individualmente quase todos aqueles que se esperava que brilhassem, excepção feita, talvez, a Ronaldo. Tacticamente, o mundial tem sido muito fraco, e isso faz com que os jogadores com mais facilidade para se desenvencilharem sozinhos sobressaiam. Faz também com que os jogos sejam mais emotivos, uma vez que os adeptos de futebol tendem a emocionar-se mais com lances individuais espectaculares (dribles, iniciativas individuais estonteantes, remates de longe, jogadas junto às áreas, contra-ataques, etc..) do que com jogadas bem pensadas. Daí que haja quem considere que este mundial esteja a ser bom. Como tal, faz também com que equipas que estão a dominar uma partida possam, em poucos minutos, ser encostadas à sua área, como aconteceu com a Nigéria frente à França, com o México frente à Holanda, com a Costa Rica frente à Grécia, ou com a Bélgica frente aos Estados Unidos. Quando, tacticamente, as equipas não demonstram grande coisa, sobressaem as individualidades e sobressai a crença dos jogadores, o que torna tudo muito mais imprevisível, volátil e, para quem acha que bom futebol é futebol junto às áreas, emotivo. Que tantas individualidades estejam a deslumbrar individualmente e que se esteja a registar tanta imprevisibilidade denota justamente o decréscimo de qualidade do futebol que tem sido jogado; denota que os detalhes estão a ter mais importância do que deviam. Os guarda-redes têm brilhado porque, precisamente, não se tem jogado bem. Luís Freitas Lobo disse outro dia que nunca tinha visto ninguém defender tanto como Tim Howard frente à Bélgica. Realmente, defendeu muito, se estivermos a pensar em quantidade. Mas não o vi fazer nenhuma defesa extraordinária. Fez quase duas dezenas de defesas, e nenhuma delas foi uma defesa impossível. O que Freitas Lobo não percebeu foi que Tim Howard não fez mais do que qualquer guarda-redes faria. Defendeu o que tinha de defender. Do facto de que os guarda-redes estejam a ser chamados mais vezes a intervir do que é costume não se segue que estejam a fazer grandes exibições. À excepção de um ou outro caso, é absurdo ficarmos espantados, por exemplo, com o guarda-redes da Argélia ou com o guarda-redes da Nigéria. São guarda-redes banalíssimos que estiveram mais em jogo porque as defesas têm defendido mal e porque os ataques não têm encontrado as condições de finalização ideais.

Quando o futebol é colectivamente mal jogado, sobressaem os apontamentos individuais, aumenta quantidade de lances junto às áreas e, por conseguinte, dispara o protagonismo dos guarda-redes. Quando assim é, tudo fica mais dependente dos detalhes, e é quem for mais eficaz nos detalhes ou quem tiver mais sorte neles, não quem for melhor em termos gerais, que terá sucesso. O futebol deste campeonato do mundo, até porque está a ser disputado onde está, não é muito diferente do futebol que se vê semanalmente em qualquer campeonato sul-americano. As melhores equipas, porque as condições assim o proporcionaram, não são as melhores equipas em condições normais, não são as equipas organizadas e com uma ideia de jogo colectiva, mas aquelas que conseguem aliar a solidariedade e o sacríficio defensivo à inspiração de dois ou três atacantes individualmente muito competentes. Sobram apenas 2 equipas cuja competência táctica merece louvor, a Alemanha e a Bélgica, e mesmo essas têm sobrevivido mais à custa da competência das individualidades do que da competência colectiva. Este mundial representa uma regressão, em termos tácticos, sem precedentes, e é de facto a melhor forma de culminar um ano profundamente negro na História do Jogo. Confesso que não esperava que fosse possível uma equipa voltar a ser campeã do mundo sem que fosse, em termos colectivos, minimamente competente, mas este mundial prepara-se para me mostrar que estava enganado. Estava enganado, porém, sem o estar. É que, no meu raciocínio, não equacionei a preponderância decisiva dos factores externos. E foram os factores externos, sobretudo as condições climatéricas anormais para a prática do futebol, que propiciaram este cenário. Nos últimos anos, o futebol evoluiu de modo a que os detalhes e as individualidades não fossem suficientes para sagrar campeões. Infelizmente para quem gosta de futebol, este mundial voltou a tornar o futebol um jogo só de detalhes e individualidades. Por absurdo que pareça, em 2014 pode voltar a haver um campeão do mundo que não sabe jogar futebol.

domingo, 15 de junho de 2014

Coisas sobre a Goleada

1. Um jogo, mesmo um que acaba tão desnivelado, tem história. E a história deste não se resume a dizer que a equipa que ganhou esmagou a outra. E não se resume a isso porque é falso. A Espanha foi claramente superior durante toda a primeira parte, podia ter praticamente acabado com o jogo no lance imediatamente anterior ao lance do empate holandês, e só quem for muito estúpido (como parece que é quase toda a gente que tem falado do jogo) é que pode achar que o resultado final diz alguma coisa acerca da verdadeira qualidade das duas equipas.

2. É especialmente embaraçoso verificar todos os elogios que se têm feito à equipa holandesa, por contraste a tudo o que se tem dito dos espanhóis, se nos lembrarmos de que os holandeses não marcaram um único golo em que se possa dizer que tenham tido, de facto, algum mérito (falo de mérito colectivo). Os 5 golos holandeses resultam integralmente de erros individuais: três de Sergio Ramos, um de Casillas e um do árbitro. É verdade que, às vezes, os erros são provocados pelo adversário, e é verdade que, às vezes, uma boa jogada pode preceder esse erro. Não foi, de todo, o caso. Os primeiros dois golos são cruzamentos do meio-campo, com Sergio Ramos a dormir, encostado a Jordi Alba quando devia estar a fechar no meio, a 5/6 metros de Piqué, no máximo; o terceiro é um lance de bola parada; o quarto nem vale a pena dizer nada; e mesmo o quinto, cuja transição os comentadores de serviço tanto gabaram, só é possível porque Sergio Ramos, além de estar mal colocado de início, não faz falta quando pode e perde em velocidade. De resto, dizer que um lance de contra-ataque que consiste num único passe representa uma transição notável, enfim, é chamar estúpido a quem percebe alguma coisa do assunto.

3. A comunicação social é composta - perdoe-se o latim - por uma cambada de energúmenos. É verdade que Casillas facilitou na final da Liga dos Campeões, e é verdade que facilitou ontem. Mas quando salvou o Real Madrid em Dortmund, só para dar um de muitos exemplos, onde estavam os que agora dizem, de peito feito e contentes por serem portuguesinhos, que José Mourinho é que sabia, quando o decidiu afastar da equipa? De resto, falar de Casillas num jogo em que Sergio Ramos foi o melhor em campo pelos holandeses faz-me alguma confusão. Casillas falhou no quarto golo, quando toda a equipa (e ele próprio, porque foi o principal injustiçado no lance do terceiro golo) estava completamente desnorteada, e a falha dele foi de natureza técnica, o que é muito mais perdoável que outro tipo de falhas.

4. Sergio Ramos falhou porque não sabe o que é defender à zona, uma linha defensiva ou, em suma, uma equipa de futebol. Veja-se onde anda Sergio Ramos antes de Daley Blind fazer o passe, em qualquer um dos lances dos dois primeiros golos, e percebe-se tudo o que há para perceber acerca desses golos. Piqué está onde deve estar, dado que o lance decorre junto a uma linha. Sergio Ramos está onde, na melhor das hipóteses, deveria estar o lateral do lado oposto. Ter no eixo da defesa quem cometa erros tão grosseiros como estes dois é meio caminho andado para criar a ilusão de que se tem uma equipa fraca.

5. O que disse a respeito das goleadas impostas pelo Bayern de Munique o ano passado ao Barcelona, assim como o que disse a respeito da goleada imposta pelo Real Madrid este ano ao Bayern de Munique, vale para falar deste jogo. Em muitos casos, uma goleada não representa nem a verdadeira diferença entre as duas equipas nem a verdadeira diferença entre o que elas fizeram ao longo dos 90 minutos. Explica-se, essencialmente, falando de motivação e concentração. Alguém, no seu perfeito juízo, diria ao intervalo que o resultado justo era uma goleada a favor dos holandeses? Alguém diria, sequer, que os holandeses mereciam estar empatados? Por que raio é que, durante os primeiros 45 minutos, os comentadores se fartaram de elogiar a Espanha e de tecer considerações acerca da eventual vitória dos espanhóis, e terminaram o jogo a falar em escândalo? Que raio de estupidez é esta que consiste em dizer exactamente o contrário do que se dissera 45 minutos antes e, ainda assim, se achar que se está a formular um discurso coerente? Como é que se pode chegar ao final de uma partida em que se disseram coisas tão contraditórias e afirmar que o resultado final é perfeitamente ilustrativo do que se passou nos 90 minutos? Está tudo doido? O resultado desnivelado, como qualquer resultado, não espelha nada do que se passou nos 90 minutos. Explica-se por um ou dois detalhes, que mudaram inteiramente as coordenadas da partida. Silva falha o 2-0 e Van Persie empata no lance seguinte, quando a Holanda nada fizera para isso; a abrir a segunda parte, sem mérito algum, uma vez mais, Robben aparece em posição privilegiada e faz o 2-1. Quando os espanhóis começam a reagir, sofrem o terceiro, num lance ilegal. Ainda conseguem reagir, chegando mesmo a criar algumas situações, mas o desnorte apoderara-se deles, e Casillas oferece o quarto. Em poucos minutos, tinham passado de uma situação de vantagem para uma situação inesperada. Para além da desmotivação e do desnorte, cria-se naturalmente uma sensação de impotência que conduz à apatia. Dizer o que quer que seja a propósito do real valor destas duas equipas num jogo assim é, no mínimo, irresponsável. E fazer prognósticos a propósito do resto do campeonato com base num desafio destes é francamente estúpido.

6. É talvez importante pensar acerca dos motivos pelos quais, nos últimos tempos, tantas equipas que baseiam o seu jogo em posse têm sido goleadas. A meu ver, é relativamente simples percebê-lo. Em equipas que se arrumam de forma mais conservadora, o tipo de apatia que descrevi antes não faz tanta mossa. Em equipas que jogam como a Espanha, com muito espaço nas costas da defesa e muitos jogadores dentro do bloco adversário, essa apatia leva a que se concedam oportunidades de golo atrás de oportunidades de golo. Ser goleado como a Espanha foi não é, pois, tão grave como isso. É apenas sinal de que a apatia, em equipas que assumem o jogo como os espanhóis assumem, tende a conduzir a resultados desnivelados. Nestas circunstâncias, ser goleado parece-me tão normal como não sê-lo.

7. Esta equipa holandesa, não obstante a competência do seu treinador, é talvez a mais fraca, em termos individuais, de que tenho memória. Falar no regresso da Laranja Mecânica é, por isso, francamente insultuoso. É verdade que, por todas as razões, este não é o melhor jogo para tirar ilações acerca do que poderão os holandeses fazer daqui para a frente, mas de uma equipa em que se aproveitam apenas o lateral esquerdo, Daley Blind, e os dois atacantes, Robben e Van Persie, acho difícil esperar grandes feitos. Posso estar muito enganado - e Van Gaal é suficientemente astuto para esconder as debilidades da sua equipa - mas acho que a única convicção com que fiquei depois desta goleada, ao contrário de todas as convicções com que ficaram as outras pessoas, foi a de que a Holanda não é candidata ao título.

8. Quanto à candidatura da Espanha, mantenho a mesma opinião que tinha antes de começar o campeonato. São a equipa mais poderosa em prova e os seus principais adversário serão, como já eram antes, as condições climatéricas e o desgaste que vier a acumular devido a essas condições. É verdade que a goleada é perigosa, até porque não me parece que a Holanda venha a ter facilidades para vencer o Chile, mas as aspirações espanholas continuam intactas. De resto, é até possível que tal derrota (e pelos números que foi) fira suficientemente o orgulho dos jogadores para que os espevite para o que aí vem. Há 4 anos, quando sugeri que a Espanha, após ter perdido o primeiro jogo com a Suíça, continuava a ser o principal candidato à vitória final, baseie a minha convicção naquilo em que as convicções devem ser baseadas, ou seja, na razão. E a razão, ao contrário do resultado desnivelado com o qual tanta gente tem exultado, diz-me que é estúpido achar que uma goleada sofrida, ainda por cima pelos motivos acima aduzidos, altera o valor da equipa que a sofre.

9. Em que medida é que pessoas que exultam com a goleada sofrida pelos espanhóis ante os holandeses (e têm sido inúmeros, desde anónimos a pessoas que, de acordo com um determinado código, deviam ser um bocadinho mais isentas) são diferentes de pessoas para quem o mundo estaria melhor sem Shakespeare? E em que medida é que pessoas assim se distinguem das pessoas que, a dada altura, acharam que o mundo estaria melhor sem judeus? Não é exagero; exultar com o que se passou ontem é parecidíssimo com exultar com câmaras de gás. Ficar contente perante a perspectiva de a melhor coisa que já aconteceu ao futebol poder finalmente desaparecer é, deste ponto de vista, mais ou menos o mesmo que bater palmas a um genocídio. É de congratular a ignorância com que o faz quem o faz. A Humanidade está de certeza orgulhosa de vocês! 

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Os melhores de 2013/2014

Como tem sido hábito, mesmo numa época em que pouco ou nada disse sobre a Liga Portuguesa, aqui fica o melhor onze, na minha opinião, disposto em 433:


Guarda-Redes: Oblak
Defesa Direito: Duarte Machado
Defesa Esquerdo: Alex Sandro
Defesas Centrais: Luisão e Ezequiel Garay
Médio Defensivo: William Carvalho
Médios Ofensivos: Enzo Perez e Evandro
Extremos: Markovic e Nico Gaitan
Avançado: Jackson Martinez

Treinador: Jorge Jesus

Suplentes:

Guarda-Redes: Rui Patrício
Defesa Direito: Sílvio
Defesa Esquerdo: Siqueira
Defesas Centrais: Otamendi e Paulo Oliveira
Médio Defensivo: Matic
Médios Ofensivos: Lucho Gonzalez e Adrien
Extremos: Pedro Santos e Rafa
Avançado: Freddy Montero

Treinador: Marco Silva

terça-feira, 3 de junho de 2014

Balanço Negativo

Como tive oportunidade de escrever, esta época futebolística representou, de certo modo, um retrocesso na evolução do jogo. Com um campeonato do mundo à porta ao qual alguns dos melhores jogadores do mundo chegam em más condições (ou não chegam, de todo), e a julgar por aquilo que se passou há um ano no Brasil, antevejo uma prova sofrível, o que seria a cereja no cimo do bolo. Não acredito, apesar de tudo, que um ano sirva para inverter a evolução do que quer que seja, e a tendência será, nos anos que se seguem, as coisas voltarem à normalidade. Dito isto, gostaria de fazer um balanço daqueles que foram os principais destaques desta temporada:

Em Portugal, Jesus voltou a ser campeão. Tenho falado muito acerca do quão importantes são, para o reconhecimento de um treinador, um jogador ou uma equipa, as circunstâncias que os mesmos não controlam, como o acaso, o talento dos adversários, as decisões de terceiros, etc., e esta época de Jesus é disso um extraordinário exemplo. Para muitos, porque ganhou mais títulos do que nunca e porque esteve pertíssimo de ganhar tudo o que podia ganhar, este foi o melhor dos cinco anos de Jesus à frente do Benfica. Não só discordo amplamente disto como me parece absurdo que se tenha tal opinião. O Benfica começou muito mal a época, tendo uma participação medíocre na Liga dos Campeões e perdendo muito terreno para o principal adversário. Se o Porto não estivesse fragilizado e conseguisse manter a qualidade do futebol que apresentou no início da época, o Benfica teria tido muitas dificuldades em recuperar o terreno perdido e, pior do que isso, em atingir os níveis de confiança que viria a atingir no final da época. Quando se fala na época no Benfica, concede-se o mau arranque, mas considera-se que a segunda metade da época o compensou. Esquece-se, porém, que só o compensou porque as coisas começaram a correr mal aos adversários dos encarnados. Os níveis de confiança subiram porque os resultados começaram a ser positivos, não o contrário. O Benfica termina a época a poder ganhar tudo porque internamente não teve adversários à altura, o que permitiu à equipa convencer-se de que não tinha defeitos e, assim, elevar bastante os níveis de confiança que, no início, estavam bastante debilitados. Foram as circunstâncias externas, não a qualidade do Benfica propriamente dita, que ditaram o sucesso desportivo desta época. O Benfica de Jesus, tal como o do ano passado, é mais calculista do que nunca. Defensivamente, tornou-se uma equipa fortíssima, mas ofensivamente depende cada vez mais das características atléticas dos seus jogadores. Em termos de criatividade colectiva, foi mesmo o ano mais fraco dos cinco anos de Jesus.

Em Espanha, o Atlético de Madrid foi campeão. Já disse a maior parte das coisas que tenho a dizer sobre a equipa de Simeone, mas posso dizer mais uma ou outra. Continuo sem conseguir dar mérito a uma equipa cuja principal arma é a agressividade com que disputa os seus lances. Não o consigo não por não valorizar o empenho e a crença daquelas jogadores, mas porque acho que, em futebol, níveis de agressividade como os do Atlético de Madrid são contraproducentes. São-no no sentido de desposicionarem e desgastarem excessivamente quem os pratica, já para não falar do risco que é jogar 90 minutos com entradas a pedir cartão, e só podem ter gerado sucesso por factores alheios ao jogo. Em primeiro lugar, pela conivência das equipas de arbitragem. Foram pouquíssimos os jogos do Atlético de Madrid a que assisti em que não ficasse um ou dois jogadores por expulsar. Em segundo lugar, porque os adversários foram bem mais fracos do que em anos anteriores. Por fim, porque a fragilidade dos adversários e a possibilidade do título no horizonte criaram a ilusão aos jogadores de que eram melhores do que são, o que os fez transcenderem-se. O Atlético de Madrid foi campeão e Simeone é hoje um dos treinadores mais aplaudidos na Europa. Individualmente e colectivamente, contudo, a equipa é banalíssima. Há jogadores com futuro, mas são poucos: Courtois, Arda, Adrián e Oliver, principalmente, sendo que os últimos dois praticamente nem foram opção. Colectivamente, não há um princípio de jogo que se possa dizer que seja extraordinário. Ofensivamente, então, desafio mesmo a que me digam que tipo de jogadas é que a equipa privilegia. Assim que as coisas começarem a correr menos bem, a confiança com que chegaram até ao topo evapora-se. E é nessa altura que a verdadeira qualidade ficará à vista. A minha previsão é de que esse momento não tardará.

Em Inglaterra, igualmente, o ano foi muito fraco. Como previa há um ano, a reforma de Alex Ferguson e o regresso de Mourinho iam fazer com que o campeonato inglês fosse mais disputado do que tinha sido nos últimos anos. Não esperava, porém, que, além de disputado, fosse tão mal disputado. Wenger continua a ser pouco perspicaz, em termos defensivos, e isso custou-lhe mais um campeonato. Andou durante muito tempo na frente, mas não teve estofo, na recta final da prova, para preparar a equipa para ser campeã. Ao contrário, todavia, do que se conjecturava, o seu Arsenal esteve mais perto dos principais candidatos, o que comprova que, quando o plantel se mantém, a tendência é tornar-se melhor. A próxima época, não perdendo ninguém, mostrará um Arsenal mais experiente e certamente mais capaz de se impor quando as coisas correrem menos bem. Mourinho foi a principal desilusão (tendo em conta que de André Villas-Boas, depois do que fizera no ano anterior, dificilmente esperava mais do que meia temporada em Londres) e o Chelsea, repleto de jogadores talentosos, acabou a temporada a jogar à Di Matteo. Mata fora o melhor jogador do Chelsea nos últimos dois anos, e foi o primeiro a ser ostracizado por Mourinho. Seguiu-se Óscar. Sobrou Hazard, o que é manifestamente pouco. Abdicar de dois dos três jogadores mais criativos da equipa é de uma estupidez inacreditável. Mourinho pode continuar a ser um treinador atento, muito esperto e competitivo, mas, depois da lobotomia, deixou de pertencer ao restrito grupo dos melhores treinadores do mundo. O Chelsea só não foi campeão porque Mourinho já não é Mourinho. Pellegrini não é um treinador genial, mas é um treinador com uma ideia de jogo interessante. Conseguiu ser campeão porque o principal adversário, pelo menos em termos de recursos, andou o ano inteiro a jogar como uma equipa pequena. Sobre David Moyes e o que aconteceu ao Manchester United, francamente, não me surpreende. O seu Everton foi sempre uma equipa deprimente, e era natural que não conseguisse melhor em Manchester. Conseguir ficar atrás da sua antiga equipa, agora bem melhor treinada, aliás, foi obra. Sobre Brendan Rodgers, não tenho uma opinião muito formada. Não vi muitos jogos do Liverpool, mas os que vi não me entusiasmaram particularmente. É uma equipa competitiva, muito agressiva, e que me parece beneficiar disso por jogar em Inglaterra. Mas não vejo uma equipa criativa, capaz de resolver problemas complicados, e com uma ideia de jogo clara, que não se baseie unicamente em recuperar a bola em zonas adiantadas ou em atacar vertiginosamente. É uma espécie de Atlético de Madrid, ainda que não tão agressiva e com menos qualidade individual, que dependerá muito, no futuro, daquilo em que os jogadores puderem acreditar.

Em ano de estreia na Alemanha, Guardiola fez muitas coisas boas, mas podia ter feito mais. Em termos de títulos, francamente, foi uma época muitíssimo positiva. Ser campeão a 7 jornadas do fim, vencer a Taça e alcançar as meias-finais da Liga dos Campeões é muito bom, e dificilmente se podia pedir mais. Em termos de evolução de ideia de jogo, também me parece irrefutável que este Bayern se tornou mais forte e mais dominador do que era, ainda que não tenha ganho tanto. Faltou, no entanto, uma coisa que, a meio da época, parecia mais ou menos evidente e possível, a capacidade de a equipa continuar a evoluir num modelo de jogo tão exigente como aquele que Guardiola propõe. A minha opinião é a de que Guardiola sentiu demasiadas pressões e, a meio da temporada, não obstante a equipa estar cada vez mais sólida e cada vez mais capacitada para jogar como pretendia, decidiu fazer a vontade a quem o criticava. Aproveitando-se da vantagem no campeonato, começou a preparar a equipa para jogar como jogara em anos anteriores, arriscando menos quando em posse, e isso fez com que os bávaros parassem de aprender a jogar dentro de um modelo que exige coisas que só com muita prática se aprendem. Pareceu-me, porém, que Guardiola nunca se satisfez com isso, e a verdade é que foi em alguns jogos mais exigentes que voltou às suas ideias arrojadas. Na Liga dos Campeões, por exemplo, nunca jogou com dois médios de perfil, como o passou a fazer na segunda metade do campeonato. O que aconteceu foi que, nos dois únicos jogos em que se exigia perfeição à equipa em posse, os bávaros não conseguiram ser perfeitos. E não o foram, essencialmente, porque a exigência de Guardiola na segunda metade da época não foi suficiente. Jogaram de acordo com uma ideia de jogo boa, mas sem o devido nível de preparação para ela. Sem essa preparação, e sem a sorte do jogo que o Real Madrid acabou por ter, o Bayern acabou por desconcentrar-se e terminou a eliminatória dando uma imagem que não é a verdadeira imagem da equipa. Não sei se Guardiola prepara grandes mudanças no plantel para a época que vem, mas o mais importante seria tentar convencer os jogadores de que, apesar do desaire, aquela é a melhor maneira de serem uma equipa de futebol.

A principal prova do futebol europeu foi, talvez, o espelho mais fiel da tenebrosa temporada futebolística que se viveu este ano. Desde jogos horripilantes, como a primeira mão da eliminatória que opôs o Atlético de Madrid ao Chelsa, a decisões dramáticas no tempo regulamentar, como o povo tanto gosta, esta edição da Liga dos Campeões teve mais a ver com religião do que com futebol propriamente dito. As equipas que melhor futebol apresentaram foram sendo eliminadas, fosse pelo azar ditado pelo sorteio, como o Manchester City e o Arsenal, fosse por cobardia, como o PSG, fosse por erros próprios ou porque o futebol, em última análise, é um jogo que se presta a isso, como o Borussia de Dortmund ou o Barcelona, e nas meias-finais só já havia uma equipa cujo futebol era minimamente interessante. Quando, nas quatro semi-finalistas, há apenas uma das seis equipas que melhor futebol mostraram, pouco mais há a dizer. O Real acabou por vencer a décima e foi o menos mau que poderia ter acontecido. A equipa continua longe de jogar bem, mas consegue juntar um leque de jogadores que, do ponto de vista individual, pode ser decisivo. Foi-o, de facto, nos quartos de final e nas meias-finais, e foi por esse leque de individualidades que marcou presença na final. Há, no entanto, muito, mas mesmo muito, a melhorar no ano que vem, sobretudo porque a ambição de ganhar uma competição que não ganhavam há largos anos, o principal dínamo emocional da equipa esta temporada, já não existe, e porque há uma série de jogadores (Ronaldo à cabeça) cuja idade forçará a que o seu rendimento seja, a partir de agora, tendecialmente inferior.