domingo, 27 de abril de 2014

Idade das Trevas

Vivem-se hoje, no que diz respeito ao futebol, tempos idênticos àqueles que o mundo conheceu na sequência do declínio do Império Romano, tempos de obscuridade em que o progresso parece ter sido interrompido. Um pouco por todo o lado, triunfam as equipas cuja principal virtude é a transpiração, sendo o maior exemplo disto o Atlético de Madrid de Simeone, uma equipa tão competitiva quanto retrógrada. A primeira mão da meia-final da Liga dos Campeões que opôs o Atlético de Madrid ao Chelsea foi, a todos os níveis, um dos jogos mais deploráveis do século XXI. Haver num campo de futebol duas equipas e nenhuma delas ser uma equipa de futebol não só não é coisa que se esperasse ver numa meia-final de uma competição tão importante como não é coisa que se tenha visto muito nos últimos 20 anos. Não obstante, não quero falar muito deste Atlético de Madrid, ou do Chelsea de Mourinho. O sucesso de Guardiola em Barcelona contribuiu muito, a meu ver, para o progresso do futebol, e os anos que se seguem tratarão de o comprovar, ainda que esse progresso se faça paulatinamente e, pelo meio, haja retrocessos pontuais, como parece ser o caso desta época.

A melhor forma de falar da escuridão que tem sido esta temporada futebolística, com pouquíssimas novidades dignas de interesse, é opor dois treinadores, um que pertence ao século passado, outro que é um visionário. Refiro-me a Tata Martino e a Pep Guardiola. Martino tem, apesar de tudo, uma virtude: a de não ter tentado uma revolução. Percebeu que tinha de continuar o trabalho de Guardiola e de Tito Villanova, e percebeu que o melhor a fazer era não mexer muito. As pessoas esquecem-se, por exemplo, que a primeira volta do Barcelona, este ano, foi impecável (mesmo sem Messi durante alguns meses), e isso se deve, sobretudo, à forma como Martino procurou fazer com que os jogadores continuassem a jogar da maneira como sabiam. Faltou a Martino, porém, tudo o resto. Faltou perceber que jogar de determinada maneira implica fazer um sem número de coisas, faltou ser capaz de manter os jogadores concentrados em jogos de baixa exigência, faltou dar minutos de descanso a alguns jogadores (como Xavi) e mostrar a outros que a equipa precisa deles  não apenas quando não há outros para jogar (Bartra, Song e Sergi Roberto) e faltou ser capaz de ler bem aquilo que os jogos pediam dele. Até à eliminatória com o Atlético de Madrid, para a Liga dos Campeões, estes problemas pareciam pouco visíveis. O Barça tinha superado um adversário difícil, o Manchester City, tinha mostrado que continuava superior ao Real Madrid, nos confrontos directos, e só dependia de si para ser campeão.

Tudo terminou quando uma equipa super-agressiva, que joga à margem das leis, na maioria das vezes, deixou a nu os principais problemas de Tata Martino. É verdade que o Atlético de Madrid, com árbitros menos ingleses (os primeiros dez minutos da segunda mão foram vergonhosos, com o Atlético a criar sistematicamente situações de perigo que começam em faltas não assinaladas por Howard Webb), dificilmente teria passado essa eliminatória, mas o que é constrangedor é que isso nunca fora um problema, por exemplo, no tempo de Guardiola. Martino começou a perder a eliminatória quando sugeriu que, para vencer a equipa de Simeone, o Barça precisava de ser tão intenso como o Atlético. Não percebeu que, contra equipas intensas, o melhor antídoto é ser pouco intenso, é ficar com a bola, reduzir o ritmo de jogo, circular em segurança, cansar o adversário, levá-lo para onde quer, etc.. Contra uma equipa cuja principal estratégia ofensiva é pressionar alto para aproveitar os possíveis erros do adversário, a melhor contra-estratégia é arriscar, sair a jogar pelos centrais, fazer baixar os três médios para criar linhas de passe interiores, e adiantar os laterais. O Barcelona tentou fazer a sua circulação habitual, mas muito timidamente, e abandonando-a sempre que sentiu medo de cometer erros. Contra uma equipa que faz da intensidade com que joga a sua maior arma, a melhor estratégia é sempre fazer com que essa intensidade não tenha relevância. E isso faz-se tendo a bola, entrando nas zonas de pressão do adservário apenas para sugerir ao adversário que pode recuperar a bola, saindo delas imediatamente e, com isso, cansando o adversário. 

Quando se fala de posse de bola, esquece-se geralmente de que ela tem um uso passivo e um uso activo. Diz-se que ter muita bola não serve para nada, e muitos treinadores até preferem que a equipa adversária tenha a bola para lha poderem tirar. Esquece-se de que quem tem a bola não tem apenas a bola; tem também a possibilidade de conduzir o adversário para onde quiser. O Barcelona de Tata Martino não tem apenas menos posse de bola, em quantidade, do que tinha o Barça de Guardiola. É também muito menos inteligente a fazer um uso táctico da bola. O Barcelona de Guardiola usava a bola para descansar, para se reorganizar, para retirar a iniciativa de jogo ao adversário, mas usava a bola também de forma activa, entrando no bloco para solicitar que o adversário activasse a sua pressão, saindo rapidamente do bloco para circular por fora e assim ir explorar os espaços deixados em aberto pela pressão que entretanto o adversário activara. Este Barcelona continua a usar a bola de forma passiva muito bem, continua a ser capaz de ter mais bola que os adversários, e continua a ser capaz de, ocasionalmente, activar combinações estonteantes entre os seus jogadores, mas não sabe usar a bola, porque não tem treinado para isso, como um engodo. E esse uso era precisamente aquilo que, há uns anos, fazia com que houvesse um fosso gigantesco entre essa equipa e as restantes. Esse fosso, actualmente, deixou de existir, e o Barcelona é uma equipa tão permeável aos detalhes quanto outra qualquer. Ainda que continue a ser dos melhores conjuntos, e ainda que continue a ter alguns dos melhores jogadores do mundo, já não é uma equipa que, em condições normais, ganha sempre. Acresce a esse problema um outro, que com ele se relaciona: o facto de Tata Martino não perceber que, para jogar como o Barcelona deve jogar, em toque curto, com posse, tem de cumprir um vasto leque de requisitos. Não pode, por exemplo, ter a linha defensiva sediada no meio-campo, a dez ou mais metros do médio-defensivo; tem de haver uma sucessão de coberturas que impossibilite que o adversário consiga criar linhas de passe assim que recupera a bola.

Se, contra o Atlético de Madrid, ficou evidente que Tata Martino é um treinador banal, não percebendo sequer que a equipa de Simeone não é sequer muito forte em termos zonais e que bastava ter jogado com dois extremos constantemente abertos (Martino percebeu a meio da época que tinha mais sucesso jogando com Iniesta e Neymar nas alas, ou seja, com jogadores menos profundos e que gostam de vir para dentro, mas achou que essa fórmula era a fórmula certa para todo e qualquer jogo) para que houvesse mais espaço pelo meio (aliás, foi assim que o passe de Iniesta pôde entrar, no golo de Neymar), algumas das novidades tácticas apresentadas por Guardiola no seu Bayern de Munique devem ajudar a confirmar que o catalão é mesmo de outra galáxia. É verdade que Guardiola tem cedido a algumas pressões dos dirigentes bávaros e é verdade que algumas das suas ideias, por esse motivo, têm demorado a ser implementadas. Mas nota-se, sobretudo quando as coisas correm bem e sente a possibilidade de testar coisas diferentes, uma vontade enorme de revolucionar o futebol dos alemães. A mais recente das surpresas tácticas confirma que quem acha que, em futebol, já tudo foi inventado, é um imbecil. Tal como mostrou, na Catalunha, que ainda era possível jogar em 343 ao mais alto nível, mostra agora que um lateral não é necessariamente só o que as pessoas pensam que é. Para muitos, o lateral serve para jogar pela linha. Mais defensivamente ou mais ofensivamente, é papel do lateral jogar encostado à lateral, pensa quase toda a gente. Para Guardiola, para quem os laterais foram sempre, como outros jogadores quaisquer, participantes de tudo o que equipa faz, isso nunca foi bem assim. Apesar disso, nunca os laterais de Guardiola tinham sido médios. Até agora.

Desde o início da época que se percebia que os laterais do Bayern não faziam bem o mesmo que os laterais do Barça de Guardiola, integrando a manobra ofensiva por dentro e não por fora do extremo. Agora, contudo, Guardiola parece interessado em fazer dos laterais não apenas participantes do jogo interior no último terço do terreno, mas médios de construção. Assim que a equipa entra em processo ofensivo, os centrais abrem, o médio defensivo baixa, formando uma linha de três atrás, e os laterais, em vez de subirem no terreno pela linha, vêm para dentro, para a zona deixada vaga quer pelo abaixamento do médio-defensivo, quer pela subida dos outros dois médios, que passam a preocupar-se em solicitar linhas de passe dentro do bloco adversário. O que acontece é a equipa passar a jogar com três defesas, dois médios defensivos, dois extremos bem abertos, e dois médios atacantes, constantemente preocupados em explorar os espaços atrás dos médios adversários. Introduzindo esta dinâmica logo na primeira fase de construção, Guardiola consegue assim manter bastantes jogadores no meio-campo, de maneira a dar linhas de passe próximas na primeira fase de construção sem perder a profundidade e a largura dos extremos e sem perder médios dentro do bloco adversário, algo a que dá muitíssima importância e algo que nem Kroos nem Schweinsteigger têm conseguido dar-lhe. Com esta estratégia, a equipa parece conseguir manter o adversário o mais aberto possível (dado o posicionamento dos extremos, que deixam de ter de vir tanto para dentro) e parece ser capaz de manter vários homens dentro do bloco adversário, a solicitar linhas de passe entre as linhas adversárias, duas coisas que, até agora, estava a ter dificuldades em conseguir em simultâneo. Tal como o 343 na Catalunha servira para ter muitos médios ofensivos entre as linhas adversárias, sem perder a largura que força a que o adversário esteja aberto, esta dinâmica parece assim permitir duas das coisas a que Guardiola mais importância dá, em termos ofensivos.

Não obstante ter algumas reservas quanto a mudanças de posições relativas de jogadores de processo defensivo para processo ofensivo, reconheço que é das coisas mais engenhosas que já vi um treinador pensar. E sentir que há quem seja capaz de surpreender com coisas nunca antes tentadas, em termos tácticos, é das coisas mais gratificantes, para quem percebe o jogo. A mim, Guardiola continua a surpreender-me. É pena que Beckenbauer, que ainda esta semana não percebeu nada do que se passou no jogo da primeira mão da meia-final da Liga dos Campeões contra o Real Madrid (o Bayern só jogou mal quando abdicou da posse de bola com que dominou toda a primeira parte), ache que o Bayern deve continuar a ser uma equipa banal, sujeita à mesma aleatoriedade da fortuna que todas as outras. E é pena que Guardiola, por força da pressão que Beckenbauer tem exercido com a sua estupidez, não possa reformar a equipa como deseja. Num ano de trevas, como este, há quem queira que as trevas engulam até a única pessoa que não se conforma em viver nas trevas. Os estúpidos só estão bem se todos à volta deles forem estúpidos como eles.