terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

Ficar com a bola enquanto for preciso

A jogada é a do quinto golo do Barcelona, no passado fim-de-semana, em San Mamés, e tem sido amplamente elogiada sobretudo por aquilo que Messi fez. É possível, porém, dizer tantas coisas acerca dela que não resisto a trazê-la à discussão. Sim, deve elogiar-se o trabalho do argentino, que pôs meia equipa do Athletic de Bilbao a andar atrás de si antes de provocar a ruptura decisiva com o passe para Busquets. Mas não é tudo o que deve dizer-se acerca do lance. A primeira coisa em que a jogada me fez pensar foi nas pessoas que não compreendem o facto de certos jogadores, sejam eles quem forem e estejam eles em que circunstâncias estiverem, demorarem algum tempo a soltar a bola. Para muitos, há uma regra privada que diz que a bola deve circular rapidamente entre jogadores, sobretudo quando não há progressão no terreno. Uma vez que acreditam em tal regra, enervam-se sempre que alguém fica algum tempo com ela em seu poder, mesmo que essa decisão se deva à necessidade de procurar uma linha de passe segura ou à espera por uma desmarcação. Quando isso acontece perto da grande área adversária, então, segurar muito tempo a bola é invariavelmente entendido como perda de tempo e lentidão de processos. Na zona frontal, só com a linha defensiva pela frente, acreditam que se deve procurar espaço para o remate, um passe de ruptura ou, quando muito, uma combinação rápida com  um colega.

Para quase toda a gente, o que Messi fez, indo para a esquerda com a bola, não a soltando em nenhum colega e preferindo rodar por trás para voltar para a direita, em zona frontal à baliza, é uma bizarria. A todos os que pensam assim, mesmo àqueles que não o tenham pensado pela simples razão de se tratar Messi, deve ser dito que não pensam bem. Um jogador não deve soltar a bola porque sim, porque alguém estipulou que é errado ficar com ela durante muito tempo, da mesma maneira que não deve agarrar-se a ela porque sim, porque tem qualidade individual suficiente para tirar um ou outro adversário do caminho. São as circunstâncias que determinam quais as melhores decisões a tomar, e um jogador deve agarrar-se à bola ou soltá-la consoante as circunstâncias. É isso que distingue um bom jogador de um jogador desenrascado. Há jogadores que aproveitam o espaço que têm para fazer o que sabem fazer, sejam as circunstâncias quais forem. Vivem daquilo que o jogo lhes permite e tentam pensar o mais rapidamente possível, para que o pouco espaço de que dispõem, a cada instante, não seja desperdiçado. Não esperam pelo melhor momento, nem procuram alterar as circunstâncias com um compasso de espera, protegendo a bola até aparecer a melhor solução, etc.. Lembro-me de dois médios ofensivos relativamente recentes de que nunca gostei particularmente e cuja reputação sempre me pareceu excessiva, que ilustram este defeito: Neca e Rúben Micael. Há evidentemente virtudes em ser um jogador de um ou dois toques. Mas um jogador que não é mais do que isso, que não prende a bola em situação alguma e que acredita que prendê-la é sempre errado não é um grande jogador. Se há coisa que a jogada de Messi demonstra é que há momentos em que segurar a bola, ir para um sítio com ela para voltar ao ponto de origem depois, atrair adversários e esperar por desmarcações de colegas é a melhor decisão a tomar. Note-se, aliás, que não era sequer preciso ser Messi para fazer o que o argentino fez. Não há nada de especialmente difícil, do ponto de vista técnico, no lance. Há algum atrevimento, que não haveria se não houvesse confiança nos seus atributos técnicos, mas não há, em momento nenhum, nada que outro jogador minimamente razoável em termos técnicos não pudesse fazer.



A última coisa de que quero falar é da desmarcação de Busquets. Enaltecer as decisões de Messi sem lembrar a decisão de Busquets de solicitar aquele passe é tremendamente injusto. Sem ela, o lance não teria dado golo e ninguém elogiaria agora Messi. Pelo contrário, dir-se-ia que Messi se agarrara em demasia à bola, que desperdiçara linhas de passe e que permitira à defesa adversária controlar o lance sem grandes problemas. Para fazer um passe, como para dançar o tango, são precisas duas pessoas. Nenhum jogador, por melhor que seja, joga sozinho, e nenhuma boa decisão depende apenas de um jogador. Busquets é médio defensivo e, normalmente, é responsável por dar apoios recuados. Quando muito, oferece uma solução lateral ao portador da bola. E, naquele lance, poderia ter-se limitado a dá-la. Busquets percebeu, no entanto, que no momento em que Messi decide passar entre os dois jogadores adversários, havia uma melhor decisão do que ficar à espera do passe lateralizado do argentino; percebeu que, se iniciasse a marcha naquele momento e passasse nas costas do lateral, Messi iria ter uma linha de passe perfeita, instantes de segundo depois, entre o central e o lateral. Ao perceber as circunstâncias do lance, e aquilo que elas lhe pediam, Busquets percebeu que a melhor decisão que tinha a tomar, para facilitar a decisão do seu colega, era solicitar a bola naquele espaço. A isto chamo capacidade de leitura. O movimento de Busquets é profundamente atípico no jogador catalão e ninguém lhe levaria a mal que fizesse aquilo que está mais habituado a fazer, que seria oferecer uma linha de passe segura. Mas Busquets não é um jogador qualquer. A sua capacidade de leitura dos lances é muito acima da média, e aquilo que fez demonstra-o bem.

Quando se voltar a criticar um jogador que, não provocando duelos individuais, demora muito a soltar a bola, pense-se primeiro no que esse jogador está verdadeiramente a fazer. Leiam-se as circunstâncias e veja-se se, por acaso, ele não estará a pensar bem, se não estará à espera de uma solução mais fiável, de um linha de passe melhor, de um desequilíbrio da equipa adversária. E olhe-se bem para o jogo, quando isso acontecer. Que se tenha a capacidade de ver se, além de tudo isso, os colegas do portador da bola estão a fazer tudo o que devem para que ele possa tomar a melhor decisão possível. Não é nada incomum que um jogador, sobretudo um jogador inteligente, se agarre à bola sobretudo por ter intuído qualquer coisa que os colegas não intuíram ou que, tendo intuído, acharam arriscado pôr em prática. A intuição que esse jogador teve pode ser muito boa, mas, se os colegas não a facilitarem, será ineficaz. E quem é criticado é, geralmente, quem não se desfez da bola a tempo. Um bom jogador - dizem - joga bem em qualquer campo e em qualquer equipa. Não podia estar mais em desacordo. Qualquer jogador, sobretudo aquele que se destaca pelos aspectos intelectuais, é aquilo que a equipa em que joga lhe permitir ser. Numa equipa fraca do ponto de vista intelectual, um jogador inteligente só ocasionalmente se destaca pela sua inteligência. Sempre que faz ou tenta fazer algo que vai para lá das capacidades intelectuais dos que o rodeiam ou das capacidades colectivas da equipa em que está inserido, é incompreendido. Para os que não o compreendem, a imaginação com que joga e que, em equipas a sério, é o atributo mais requisitado, é invariavelmente descrita como egoísmo.

P.S. O blogue tem funcionado a meio-gás nos últimos meses e continuará a funcionar assim durante mais algum tempo. A todos os seguidores, a única coisa que posso prometer é que, a partir de Setembro, passará a ser possível escrever com mais regularidade.